Conto publicado no livro "Contos de Pescador e outros mentirosos" - Edição Especial - Outubro de 2013

Rozelene Furtado de Lima
Teresópolis / RJ

Complexo de Adão

Desde tenra idade ouvia a minha mãe conversar com as amigas vizinhas e com as minhas irmãs adolescentes e a temática, “homem“, era uma constante desses descontraídos papos. Pequena e muito magrinha ficava fácil esconder-me e ouvir as tão proibidas e enigmáticas conversas.
Não posso imaginar como é que elas sobreviviam sem televisão, celular, computador e internet. Só tinham rádio e vitrola. E foram capazes de bem educar os filhos! Certa vez as minhas duas irmãs estavam prontas para ir uma festa de casamento, com vestidos que elas escolheram o pano, desenharam o modelo e levaram à costureira. Estavam muito bem arrumadas e bonitas. A minha mãe chamou-as e falou com voz grave e dedo em riste:- Escutem bem, já falei e vou repetir – “homem não presta, não vale nada, cuidado com o bicho homem”. Elas abaixaram a cabeça e não fizeram nenhuma pergunta. Uma outra vez ela acrescentou:- não vou criar neto, tomem cuidado!
Tinha uma prateleira na cozinha, que ficava a altura do ouvido dela. E nessa prateleira ficava o rádio, aquele do tipo capela. Só ela podia tocar naquele rádio, qualquer outra pessoa teria que subir numa escada. O aparelho era o professor, o noticiário, a diversão, um companheiro que fazia com que ela vibrasse de emoção delimitando o contraste da vida de restrições. Ela oscilava como um pêndulo, entre a dura e complexa realidade e a fantasia.
Minha irmã começou a namorar escondido. Até que um dia levou o rapaz para conhecer a família. Depois que ele saiu, foi aquela ladainha, meu pai ouvia quieto e balançava a cabeça e minha mãe repetia toda aquela história que ela sabia do “homem”. E, terminava com a clássica frase: “As mulheres sofrem muito sempre por causa do bicho homem”.
As mulheres não ficavam alzaimadas, ouviam a novela e reconheciam os personagens pela fala, imaginavam as cenas, a roupagem e o cenário. Ficavam de tal maneira ligadas que faziam caretas, riam, batiam palmas e se contorciam de acordo com as cenas, um exercício mental e mímico sem tamanho. No momento da radionovela a minha mãe se esvaziava como uma banheira d’água para absorver cada palavra, cada som, decodificando dentro da história qual o significado, cor e a importância dos fatos. Era alimento para alma e aprendizagem para vida.
Cresci, e a minha mãe continuava ouvindo novelas no rádio, aquele mesmo rádio que tinha “O Repórter Esso” e que a mantinha em dia com as notícias. Um dia ela chorou muito de alegria quando ouviu que a 2ª Guerra Mundial tinha terminado.
Queria conhecer esse malvado homem, esse bicho bravo - o “bicho homem”. Eu, particularmente, nutria um sentimento escondido de carinho por esse bicho domado. Coitado! Começou sendo doador de costela para ter uma companheira. Depois perdeu o paraíso, o descanso, a vida de regalo, por causa da companheira – a tal da Eva. Teve que trabalhar para ganhar o sustento com o suor do rosto, porque Eva, como a minha mãe escutava sons que vinham do alto, ouviu a serpente enrolada na árvore da maçã, e fez com que Adão, pobrezinho, comesse do fruto proibido. E o sossego do homem foi por água abaixo.
Quando a minha mãe escutava a novela nenhum som poderia ser feito, nem o zumbido de um mosquito, ela mantinha guardada atrás do rádio uma varinha de marmelo e uma vassoura embaixo da prateleira. Ai de quem ousasse!
Se buscarmos a culpa de qualquer erro, qualquer deslize da mulher, chegaremos a Eva, adjetivando-a de desobediente e luxuriosa,fazendo uma ligação como se fosse resultado da genética do pecado. Eva enganou a Adão, traiu a sua confiança, e foram expulsos do paraíso porque Eva escutou a voz da serpente, que falou bem no seu ouvido.
Teresinha de Jesus conheceu três cavaleiros, o primeiro foi seu pai, o segundo seu irmão e o terceiro foi aquele que Teresa deu seu coração. Eu queria tanto conhecer esse “bicho homem”, deixar que ele aproximasse de mim, mas a voz da minha mãe estava no meu ouvido, dizendo: - cuidado ele é perigoso! E eu via o homem por uma vertente matizada através da imagem distorcida da educação familiar.
Até que em uma tarde de inverno, eu conheci o “bicho homem”. Ah! Ele encheu minha vida de encantos, revirou meus sonhos, reescreveu o verbete – “homem” - no meu dicionário particular, ensinou-me a flutuar nas nuvens, a saltar estrelas, a perder meu chão, comer poeira de ilusão e a cavalgar nas rédeas do amor até extenuar. Então entendi a Eva, a minha mãe e muitas ou todas as mulheres: era ele “o bicho homem” o fruto proibido, a serpente sabia disso e incitou Eva a persuadi-lo e a saborear as delícias do amor.
Qualquer culpa é da Eva que ouviu a voz da serpente, da minha mãe que, na Radionovela, sofria e lutava pelo “Direito de Nascer” ou de ser feliz. E, se buscarmos a origem estereotipada do machismo e a razão dos homens serem infiéis, é claro que esse viés nos conduzirá a Adão, um homem sofrido, indignado, humilhado com medo de ser enganado novamente pelas ”Evas”. Esse maravilhoso “bicho homem” jamais se curará do eterno Complexo de Adão que nada mais é que o mito antiquado da masculinidade, machista forjado no ressentimento e alargado por um álibi genético impregnado na memória celular da humanidade. Tudo isso em represália por ter cedido à sedução feminina. É duro reconhecer que esse sistema machista e outros de opressão só perduram porque os oprimidos aceitam seus opressores. Mas à luz do amor, nós mulheres somos apaixonadas e gratas aos homens pais, homens maridos, homens irmãos e filhos homens. Para que esses braços tão fortes? – Para te abraçar te abraçar mais.

 
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