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Rafael Ferreira da Silva
São Paulo / SP

 

Ivan e o corcunda

Ivan era visto por todos como um homem de sorte. Saúde de ferro, jamais foi vítima de um acidente, bem sucedido nos negócios e na vida amorosa. Era a personificação de Gastão, o primo do Pato Donald.
Para não dar chance ao azar, a pitoresca figura sempre tomou alguns cuidados. Bate na madeira três vezes quando fala ou escuta sobre algo ruim. Em sua residência tem uma ferradura acima da porta da sala, uma bíblia aberta no Salmo 91 sobre a mesa, a escultura de um elefante com o traseiro voltado para entrada da casa, várias espadas-de-são-jorge plantadas no quintal e na cômoda do quarto é possível ver um Buda sorridente sentado sobre uma pilha de moedas.
Quem o conhece jura que jamais viu ou imagina que Ivan seja capaz de passar por baixo de uma escada, marcar compromissos em uma sexta-feira 13, deixar uma pasta ou mochila no chão, abrir guarda-chuva em casa, quebrar um espelho ou cruzar na frente de um gato preto.
Na época da Copa do Mundo, Ivan veste a mesma cueca que usava quando a seleção brasileira foi campeã em 1970, na sua carteira nunca falta uma nota de 1 dólar e um trevo de 4 folhas, seu chaveiro é um pé de coelho, somente entra nos lugares com o pé direito e pelo menos uma vez por semana faz questão de tomar banho de sal grosso.
A única frustração de Ivan é que ele nunca havia passado a mão nas costas de um corcunda.
Porém, Ivan nunca havia encontrado um corcunda e não sabia onde achar alguém com essa característica. E olha que não foi por falta de procurar. Sempre que tinha um tempo sobrando, a pitoresca figura dava um jeito de entrar em clínicas ortopédicas para achar alguém com a mesma deformação do famoso personagem da Catedral de Notre Dame.
Recentemente, enquanto assistia uma cerimônia de casamento, Ivan avistou um pequeno corcunda que estava do outro lado da Igreja vestindo um terno verde escuro. Ele não conseguia mais prestar atenção no evento. Sua atenção estava toda voltada para aquela figura que tanto tempo esperou encontrar.
O problema é que a igreja estava lotada. Enquanto não terminasse a cerimônia era impossível chegar perto do corcunda. Sem qualquer pudor, estrategicamente Ivan se colocou na entrada da Igreja e esperou. Uma hora os convidados teriam que sair.
Fim da cerimônia, pela porta da igreja passaram os noivos, padrinhos, convidados, penetras, mas nada do corcunda. Onde estaria aquele infeliz? Ivan começou a suar frio e sentia dores no estômago diante da possibilidade de ter perdido sua chance.
A frustração deu lugar a um novo momento de euforia quando avistou o corcunda entrando no carro de um dos padrinhos. Ainda bem, ele iria à festa!
Chegando ao salão, Ivan não queria saber de mais nada. Cumprimentar os noivos, confraternizar com os amigos, comer, beber, dançar, tudo isso perdeu a importância. O pensamento estava fixo em encontrar o maldito.
De repente, ele vê um volume verde escuro em uma mesa entre os convidados próximo de onde estava. Esticou o braço e apalpou. Não era as costas do corcunda como imaginou, mas as nádegas de uma senhora que estava inclinada procurando a bolsa que havia caído. O pedido de desculpas não conteve a indignação da vítima daquele ultraje. Em função do alvoroço foi sutilmente orientado pelos seguranças a se retirar da festa.
Apesar da vergonha, Ivan não sairia sem alcançar seu objetivo. Ficou na rua, tomou o cuidado de checar que não havia outras saídas além da porta onde as pessoas deixavam seus carros com os manobristas e pacientemente aguardou.
Chovia torrencialmente e Ivan não tinha uma proteção. O vento aumentava a sensação de frio que, com a fome e sede que apertavam, faziam da espera uma tortura atroz.
Eram quase 4 horas da manhã quando finalmente o corcunda saiu do salão de braços dados com uma bonita moça, curiosamente uns 30 centímetros mais alta que ele.
Na maior cara de pau, Ivan caminhou rápido e de surpresa abraçou fortemente o corcunda, dando-lhe demorados tapas nas costas, como se fossem velhos amigos.
Depois de se desvencilhar, o corcunda fulminou o sujeito impertinente com um severo olhar de reprovação, mas conteve o ímpeto de devolver o ato com uma agressão. Por experiências anteriores sabia que era mais um imbecil que queria por a mão na sua deformidade.
Sem se importar com o que o corcunda pensava, Ivan foi para casa feliz da vida e dormiu realizado.
Acordou bem humorado e assobiando entrou no carro para ir trabalhar. Não andou cinco quarteirões e o veículo quebrou. Ligou para o guincho, mas a seguradora disse que naquele dia o socorro demoraria para chegar. Resolveu prosseguir andando. No caminho foi assaltado. Sem dinheiro e celular, achou melhor voltar para casa. Ao chegar descobriu que a mulher o traía com o vizinho. Desolado, saiu para a rua e foi atropelado. No hospital contraiu uma infecção e levou meses para receber alta. Sem o olho do dono, os negócios degringolaram. Para piorar, o fundo de reserva foi desfalcado pelo sócio que desapareceu, assim como a sorte de Ivan.

 

   
Conto publicado no livro "Fantasias & Outro delírios" - Edição Especial - Março de 2014