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Maria José Zanini Tauil
Rio de Janeiro / RJ

 

  Procissão da meia-noite

 

         Em noites de verão, quando criança, eu queria manter a janela aberta, na esperança de que entrasse uma aragenzinha para aliviar o calorão. Meu pai não deixava, pois só havia um pequeno jardim lá fora e um muro baixinho com uma cerquinha de madeira trançada, que não passava de meio metro, separando a casa da rua. Naquele tempo, os ladrões agiam nas madrugadas.

Eram casas geminadas: cinquenta e cinquenta e dois. A minha era a primeira e na outra, morava uma coleguinha, Bárbara,  da mesma idade que eu. Nossos pais combinavam e nossas casas  eram pintadas das mesmas cores, tanto paredes, como janelas e porta de entrada.

Eu e Bárbara brincávamos muito juntas, mas também brigávamos muito.Quantas vezes ficávamos debruçadas em nossas janelas, sem olhar uma para a outra. Era a fase do “estou de mal com você!Não olha para mim!”.

Numa dessas noites quentes, Bárbara me contou que não conseguia dormir. Já molhara até o lençol para refrescar, mas de nada adiantou. Como as irmãs dormiam e não poderiam contar ao pai, resolveu abrir a janela. Era exatamente meia-noite. O que viu deixou-a congelada. Um frio percorreu toda a sua espinha e ela tremeu como vara verde. Tratava-se de uma silenciosa procissão. Pessoas de vestes brancas, cada uma com uma vela na mão direita e uma foice pendurada por uma cordinha no ombro esquerdo. Não via seus pés. Eles pareciam levitar.

Imóvel, ela tentou sair, pensou em fechar a janela , mas nem um músculo se mexeu. Foi um minuto daquela passagem, que pareceu já ter uma hora. Mais adiante, eles subiram, como se a rua continuasse em ladeira íngreme... e  sumiram!

 Quando a rua ficou deserta, sem nenhuma alma vivente ou morta, seus movimentos voltaram. Fechou a janela rapidamente, o coração parecia sair pela boca. O  calor acabou. Pegou um cobertor e cobriu até a cabeça. Por fim, adormeceu. Não contou para ninguém. Além de não acreditarem, ainda levaria uma bronca por ter aberto a janela. Só eu soube. A princípio,  ri, debochei, mas fui acreditando, à medida que ela contava e tremia. De seus olhos desciam lágrimas estranhas, opacas como vela derretida.

O medo era grande, mas a curiosidade maior. Passei da meia noite várias vezes, olhando a janela, mas sem coragem.  Fui elaborando um plano. A janela era de madeira. Entre uma persiana e outra, eu começaria a escavar com um canivete, até que a rua ficasse visível. Contei à Bárbara e ela se apavorou  e me implorou que não o fizesse. Eles saberiam que estavam sendo espionados e aquelas foices poderiam entrar em função.

 Dias depois, o buraco estava redondinho. Como a pintura era branca, coloquei um esparadrapo para que ninguém da minha casa notasse. A cortina também servia de ajuda. Uma noite tomei coragem. Quando os dois ponteiros do relógio se juntaram no doze, tomei meu lugar, retirei o esparadrapo e fiquei com um olho só, de sentinela.

 Já era meia-noite e quarenta, meus pés doíam por estar de pé.  Nada de procissão. Não me passou pela cabeça que minha amiga  mentira, mas pensei que talvez tivesse dia certo para a aparição e acabei desistindo.

 Mal colei o esparadrapo no buraco, senti uma mão segurando o meu braço. Gritei...mas o grito não saiu. Era uma figurinha exatamente como Bárbara descreveu. Remexia-se no ar e olhos feito lâmpadas amarelas se fixavam nos meus. Não falou, mas sua voz chegava a mim através da mente:
 “Todos nós representamos a morte. Cada um dos membros leva um por noite. Sua amiga viu. Tivemos raiva dela, mas ainda não era sua hora. Aquela chegará aos noventa anos. Também não está na sua hora, abelhuda, mas se fizer isso novamente, dou um jeito e mudo o seu lugar na agenda! Agora vá dormir e nos deixe trabalhar em paz! Não vejo a hora de voltar para casa! Hoje tem muito trabalho!”

Desapareceu no ar. Também senti muito frio! Enrolei-me em dois cobertores e rezei...rezei...até pegar no sono. Acordei tensa.  Mamãe abriu a janela, clareou o quarto para acordar-nos para a escola. Assustei-me, pois ela ficou bem próxima  do lugar onde eu fiz o buraco e até de frente para ele. Voltei a tremer. Eu estava frita!... Não viu! Quando ela saiu do quarto, eu fui verificar. Não existia esparadrapo e nem buraco. A janela estava intacta. Será que sonhei tudo isso?

Não me conformei. Saindo para a escola, fui por fora, no jardinzinho, embaixo da janela. A grama estava cheia de madeirinha raspada com canivete.

 

 

 
 
Conto publicado no "Histórias (incríveis) da meia-noite" - dezembro de 2016