Conto publicado no Livro "O Jogo da Vida" - Contos selecionados - Dezembro de 2012



 
Adriano de Jesus Santos
Guarapari / ES

 

 

 

O livro

 



Estou sentado em minha poltrona a observá-lo. Sua localização não poderia ser mais estratégica. Encontra-se justamente no centro da estante, abrigo de tantos outros livros que de uma forma ou de outra, assumem alguma relevância na vida de seus leitores.
Aquele livro é eterno. Não se trata apenas de um monte de páginas amareladas pelo tempo e onde, em cuja capa, torna-se visível um arremendo exatamente sobre o nome do autor. Uma notável rasura provocada pela minha sobrinha, mas que não fora o suficiente para apagar de minha memória a importância daquele exemplar. O simples fato de vê-lo tornara o suficiente para que eu começasse uma nova etapa de minha vida. Passei a acreditar que a felicidade era muito mais do que os esporádicos momentos em que vivia em gargalhadas.
Lembro-me perfeitamente. Eu passava pela rua dos casulos, carregando algumas bijuterias e óculos de sol para vender naquele dia de verão. Ora e outra passava um lencinho na testa a fim de secar o suor que ameaçava descer pela minha face. No entanto, nessa mesma rua, algo chamou minha atenção quando passei em frente ao sebo de Margarete.
Jamais havia imaginado que em algum dia, um livro estimularia em mim algum tipo de curiosidade. Dei uns passos para frente até poder pegá-lo com minha mão esquerda e ver em sua capa o desenho de um homem escalando uma montanha em cujo topo encontra-se algo de muito valor. Inexplicavelmente, senti que, de alguma forma, aquela obra poderia ser bastante útil e decidi comprá-la mesmo consciente de que não saberia ler nem as palavras monossilábicas.
- Custa dez reais, disse Margarete, preocupada com o meu excesso de paparicação ao exemplar.
Dez reais parecia não ser muito, mas foi o que eu consegui em meio expediente de trabalho debaixo de um sol escaldante, penando para carregar aqueles objetos e tendo, ao meu ouvido, o barulho daquele trânsito caótico.
Margarete não deixou de demonstrar sua surpresa quando me viu meter a mão no bolso e entregar-lhe os dez reais.
-O que está escrito aqui? Perguntei-lhe apontando a capa.
-Você não sabe ler! Espantou-se. Então estude. Ainda é tempo de aprender. E assim você lerá não apenas o que está escrito nessa capa, e nem o conteúdo desse livro. Outro mundo lhe espera.
Aquele conselho martelou na minha cabeça por longos trinta segundos em que estive parado olhando o desenho do homem escalando a montanha em busca do tesouro. Uma figura que queria dizer muito mais do que aquilo que eu tinha capacidade de entender naquele instante. “Ainda é tempo de aprender” repetiu minha consciência novamente. Senti-me convidado a conhecer outras coisas além das que conhecia. Fui para casa, coloquei o livro no fundo da minha velha mala, de onde jurei só retirá-lo quando pudesse entender tudo o que estivesse escrito nele.
Começar a estudar parecia não ser o mais difícil. Um ano e meio depois já poderia me considerar alfabetizado. As mudanças foram notáveis. Já não me limitava simplesmente em sair pelas ruas oferecendo bijuterias. Passei a ler os rótulos dos meus produtos e todos os cartazes e placas que encontrava pelo caminho. E de repente as ruas deixaram de ser meros locais de trabalho e tornaram-se escola onde a cada dia eu aprendia novas informações que aperfeiçoavam minha comunicação e diversificavam minhas opiniões sobre os mais diversos assuntos.
Eu li aquele livro com muita dedicação. Evidente que eu ainda não era um exímio leitor, embaraçava-me em algumas palavras. Mas isso não me impediu de dar continuidade às minhas descobertas e consegui entender a mensagem trazida naquelas memórias de José Almeida dos Santos Junior. Uma pessoa que conseguiu vencer barreiras e realizar seus sonhos. Ele vivia preso em seu espaço que não ultrapassava os limites territoriais de um pequeno sítio, onde era assalariado.
Então percebi que se eu aprendi a ler e escrever em pouco mais de um ano e meio, também poderia ter um sucesso ainda maior. O quanto eu errei ao não entender que estudar era indispensável.
Durante alguns dias estive envolvido nessa reflexão. Liberdade não é apenas poder trabalhar a vontade para comprar o arroz e o feijão, nem circular pela cidade com a certeza de que não será perturbado por quem quer que seja. Para José, ser livre era sair daquele sítio e estar em um ambiente onde fosse possível realizar seus sonhos. Então defini que pra mim liberdade seria abandonar a idéia de que o meu futuro já estava definido de tal forma que eu não poderia fazer nada com o propósito de mudá-lo.
E eu tanto mudei que hoje estou aqui sentado em minha poltrona na biblioteca da minha confortável casa em pleno verão de um sol que beira os quarenta graus.
Fui o cenário de uma revolução liderada por mim e incentivada pela Margarete. Aquele livro constituiu o início de uma grande discórdia entre o que eu era e aquilo que poderia ser. Mas pouco importa se eu me tornei um respeitável sociólogo de sessenta e nove anos de idade e com doutorado em universidade francesa. Essas conquistas foram apenas conseqüências de um ato maior, esse sim de importância incontestável e acessível a qualquer um que se ache na necessidade de mudar sua postura diante da vida.


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