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Romilton Batista de Oliveira
Itabuna / BA

 

O narrador que nunca dorme

Nasceu, Nasceu num dia diferente. O céu acordou juntamente com o seu nascimento para dar-lhe as boas vindas, acompanhado de alguns pingos d’água que caiam para batizar o seu nascimento com a terra molhada em flor. Deram-lhe o nome mais estranho que eu já vi, e olha que eu sou daqueles narradores exigentes. Sou aquele que de inanimado não tem nada. Tenho visto muitos outros nascimentos. Tenho visto muita coisa acontecendo nesta terra nesses últimos anos. Mas neste momento estou ligado neste pequeno ser que acaba de vir ao mundo.
Nasceu sorrindo e de olhos bem abertos. Nasceu também com as habilidades linguísticas referente a uma criança bem desenvolvida, fora dos padrões humanos. Sabia de seu nome, de seus pais e dos demais compontentes de sua família, bem como de toda a história de seu país e do mundo. Nasceu uma enciclopédia. Todos ficaram abismados com o que viam! Eu, que estou aqui na terra desde há muito tempo, ou melhor dizendo, desde que Aquele que me comanda disse: “Haja luz!”, e a Luz apareceu. “Haja dia!”, e o dia apareceu. “Haja noite e que o dia se separe da noite para que da terra nasça tudo”. E a noite nasceu de costas para o dia. “Mexa-se ó Terra e dê-me a primeira obra!”, e manuseou Deus com as suas potentes maõs, criando o Homem, e respectivamente, a mulher, de forma sobrenatural. E o resto da história vocês já sabem. Vocês não sabem é que o que eu vi, nunca tinha visto desde os tempos deste grande e iniciante princípio.
E vamos que vamos porque o tempo corre como avalanche na cabeça do homem moderno, mas anda como “preguiça” naturalmente, desde o dia em que ele foi feito por seu Criador, porque o tempo não tem pressa. O homem é que tem pressa! A pressa é a grande inimiga do tempo, é também inimiga da perfeição. A pressa não existe em sua narrativa fenomenal, mas vive amarrando os homens em seus tempos fugidios. E desde Adão e Eva, ninguém mais viveu como “antigamente”. Refiro ao tempo que existia e permanece ainda vivo, o tempo fora deste tempo humano, o tempo aonde nada se acaba, onde tudo é luz e a paz movimenta os seres em constante transcendência divinal.
            Voltemos ao início desta história, real por natureza, e fictícia por exatidão. Nasceu. Ele era de uma cor que ainda o mundo não conhecia. Sua pele era diferente e sua capacidade locomotiva era de estranhar qualquer mente viva. Nasceu falando todas as línguas através de uma só. Deram-lhe o nome de Unidade. Assim Unidade foi crescendo, e todos ao seu redor se encantavam com as suas palavras. Nasceu o filósofo que mudaria a filosofia deste mundo. A habilidade de ensinar era uma constante em sua vida. Ensinou aos pais, à família, ao mundo inteiro. Ensinou a todos os pássaros novos cânticos. Os animais selvagens e não selvagens se reuniam ao seu redor aguardando ensinamentos que só ele conseguia entender. Como eu disse antes, ele falava todas as linguagens, verbais e não verbais. Unidade sabia que a sua missão era árdua e cansativa, mas estava feliz porque foi lhe dado a missão de ser o “filósofo da integração”. Ele ensinava nas igrejas, nos clubes, nas escolas, nas praias, nos hospitais. Ensinava em todos os lugares porque ele não selecionava o lugar para falar com a multidão. Falava poeticamente. De seus lábios vozes eram deslizadas de forma clara e concisa. Falava com o poder que não deixava brechas nem desvios nem espaços para divagações ou contestações. Falava sem contraste e contradições, falava de acordo com a unidade de sua nominalidade. Ele era Unidade que já tivera passado na terra, mas poucas pessoas lhe deram ouvidos, e hoje ele veio pra ser ouvido por todas as vozes.
            Eu vi quando ele teve que partir para longínquos lugares, recebendo vários convites de todos os cantos da terra: África, Oceania, Europa, Ásia e América. Visitou todos os lugares, quebrando todas as arestas da heterogeneidade que dividia os homens entre si. Rompeu com as diferenças, contrastes e contradições. Encontrou em cada cultura uma parte central e desta parte uniu todas as partes que se deslocaram de seu centro há muitos séculos atrás. Unidade tinha uma força incompreensível. Quase não dormia, ou melhor, não me lembro de nenhum dia em que eu tenha visto seu corpo numa cama. Era incansável, portador de uma energia fenomenal, de uma mente sobrenatural. Falava mansa e eloquentemente e ouvia todas as vozes com a paciência de Jó. Falava com todos os possíveis sons presentes em todas as fonéticas universais.
            Passaram-se cento e vinte anos, e Unidade cumpriu sua missão. Nesse período presenciou a morte de muitos homens e mulheres de alma suja e insana, entre eles todos os políticos maus, todos os falsos poetas e escritores, todos os artistas bêbados e estragados pela deformada forma de fazer do nada, sua estética existencialista. Muitos homens empedernidos e cruéis foram execrados e disseminados da terra. O Congresso foi extinto, e ocupou o seu lugar uma nova forma de governar a humanidade, fora dos despojos do capitalismo. A Igreja não mais cobrou de seus fiés pagamentos exorbitantes nem valor nenhum. Estava dada a nova ordem: o homem viverá mil anos, e Unidade, como profeta disse: Depois desses mil anos, Deus descerá dos Céus e sarara as feridas humanas em seu estado final. E assim Unidade viu o tempo passar, e descobriu que alguém estava a narrar sobre ele mesmo, e então tomou de mim o discurso, o poder de escritura, e fez-se narrador, decretando para mim mesmo o meu fim. Deixo agora de falar porque Unidade tomou-me de mim mesmo, fazendo-se narrador destas palavras finais. A partir de agora ele é o narrador.
            Eu, agora sou o narrador desta história, faço-me ouvir, e decreto que, a partir de agora, nenhuma escrita, seja ela fictícia ou não, terá narrador. Cada homem e cada mulher narrará suas próprias históricas aventuras, como nos velhos tempos, e de forma artesal, tenho dito. Assim que eu terminei de falar e de decretar, percebi que eu fui enganado por mim mesmo, numa eterna contradição que nem mesmo eu, Unidade, ficou de fora. Assim, entrego-me agora à Grande Voz, o Grande Narrador, Aquele que me criou, pois só Ele pode todas as coisas. Só Ele pode frear esta fórmula humana de produzir gentes, de produzir linguagens, de produzir narradores de todos os tempos, todas as linguas, todas as vozes. E num suspiro deslizante eu me senti tomado por um fixo lugar, e pela primeira vez, deitei-me e fui tirar aquele grande sono, que os narradores pós-modernos não conseguem tirar porque eles nunca dormem..

 

   
Conto publicado no Livro de Ouro do Conto Brasileiro Contemporâneo - Edição Especial - Julho de 2015