Neri França Fornari Bocchese
Pato Branco / PR

 

 

Uma verdade verdadeira

      

Um tempo que se contava história. Muitas relatadas por esse Brasil afora fazendo parte do cotidiano.
 Quando criança, ouvia contar pelo meu avô, como se fosse uma “Verdade Verdadeira’, confesso que em muitas noites, custei para dormir. Chegava ouvir o rugido do animal. Parecia até que ele estava embaixo da cama, sentia a sua respiração. Mas não podia dizer que estava com medo, se não seria chamada de maria-mijona.
O Zé Chinelo, assim chamado, pois nunca calçou um sapato ou botina sequer, era um pescador nato. Não perdia um final de semana, nem uma oportunidade de estar na barranca do Rio Forqueta, pescando ou como diziam dando banho nas minhocas. Ele era sozinho. Seu prazer consistia em pescar os lambaris ou algum peixinho maior e, ali mesmo com o cheiro do mato, fazia a fritura.
Levava sempre junto com a vara de pescar, uma frigideira, uma panela de ferro para a polenta. Tinha também um pedaço de toucinho para engraxar a frigideira, claro sem esquecer-se do bule, servia ara aquecer a água, tanto para passar o café, como para tomar o chimarrão. A bomba de tomar chimarrão, muitas vezes, quando esquecia em casa, era uma de taquarinha mesmo, como se fazia antigamente.
Para dormir  repetia a ação dos primeiros homens, aninhava-se num amontoado de folhas ou de capim. Para cobrir-se a velha capa que usara quando fora peão de estância. Às vezes deixava os apetrechos, lá no mato mesmo, atrás de uma pedra ou entre dois troncos de uma árvore.
Contavam que Zé Chinelo uma vez ao dormir achou o ninho quente, pensou ele, se é que sabia pensar, quem será o dorminhoco do meu pobre catre? Garanto foi um amigo, só para aquecê-lo pra mim.
Logo que malmente a aurora dava sinal de querer espreguiçar-se sentiu um bafo quente no rosto. Acordou depressa, quando se movimentou o bicho pulou longe, saiu amassando capim. Jurava ele, tinha dormido com um graxaim-do-mato. Era uma daquelas noites bem frias, ele veio atrás do meu calorzinho, contava todo garboso. Já antes mesmo que perguntassem respondia:
Não, não senti nem um dedinho de medo, ele voltou outras noites dormir na minha caminha, depois desapareceu.
A mais tenebrosa, das histórias de Zé Chinelo, contada por ele mesmo depois de tomar umas e outras, era de quando numa noite quente de verão, sentiu alguma coisa percorrendo o seu corpo. Ele tinha enfiando uma felpa no pé, assim ficou tempo sem pode ira pescar.
O ninho ainda estava no mesmo lugar, Pegou um tição do fogo, acendeu o brasido com o capim seco, quase teve um ataque, quando viu as Jararaquinhas percorrendo o capim. Ainda havia alguns ovos para eclodirem. Benzeu-se, rezou para o Anjo da Guarda.
Podia estar duro, nessa hora, quem iria me achar lá naquelas distâncias?
O que toda vila sabia mesmo era a história da Jaguatirica. Contava ele, um dia enquanto pescava, quase não conseguia peixe algum, quando de repente sentiu alguém ao seu lado, era uma Jaguatirica, Estava sentada bem pertinho, lambendo os beiços. Era enorme, com uma pele muito bonita, os olhos grandes, pareciam castanhos esverdeados iguaizinhos aos meus.
- Não posso ficar com medo. - Falou em voz alta.
Pediu a todos os Santos para conseguir bastante peixe. Lembrou da Pesca Milagrosa. Ouviu a leitura Bíblica, numa das poucas vezes que ficou no povoado, num domingo, quando então foi a Missa.  Não precisava nem tirar o peixinho da vara, puxava com carinho, era uma vara comprida feita de taquarinha bem flexível, o animal já estava com a boca aberta, abocanhava o anzol. Comia o peixe, devolvia o anzol intacto. Cansou o braço de tanto pescar. Foi uma das melhores pescarias. Como já estavam ficando amigos. . .
- Pedi para Jaguatirica, eu te alimento, mas você promete nunca vai me machucar.  
Dizia que a Jaguatirica balançou a cabeça em sinal de um sim. Quando o animal estava saciado deitou-se do lado dele e dormiu. Chegou a roncar.
Conseguiu mais alguns peixinhos. Como já estávamos bons amigos, agora vou fritar esses para mim. Já era noitinha, quase escuro, quando a danada da Jaguatirica acordou. Bocejou, limpou a cara com a pata dianteira e, como querendo agradecer, olhou bem para ele, saiu num salto só mato adentro.
- Você não sentiu medo?
- Nãaao, quando comecei a pescar um monte de peixe: - disse agora estou salvo. Ficou tarde, para voltar pra casa, naquela noite dormiu no mato. Foi segundo Zé Chinelo um dos sonos mais tranquilos.
Quando amanheceu a Jaguatirica dormia num galho de árvore, bem perto dele. Estava me cuidando!
Arrumei as minhas coisas, vim embora. A danada me acompanhou até na entrada do vilarejo, onde fica o meu rancho. Muitas noites enluaradas, vejo ela pelas frestas das costaneiras, fica espiando, se estou dormindo bem.
Quando acordo, dou uma abanadinha de mão, durmo outra vez.
Sempre que ele contava essa história, os olhos brilhavam dava para jurar que dizia a verdade. Terminava sempre esclarecendo:
Se alguém me fizer mal, se quiserem me jogar pedra, como fazem alguns pias atrevidos de vez em quando, eu chamo a Jaguatirica, ela vem me defender.
Passado muito tempo, o Zé Chinelo, já enterrado no pequeno cemitério, cercado, com tábuas lascadas. Estava descansando numa cova feita no chão. Sempre recebia algumas florzinhas, fazendo o pedido de que ninguém na cidadezinha, fosse atacado pela Jaguatirica.
Continuaram os mais antigos, nas rodas de chimarrão, em memória do Zé Chinelo, a contar a sua história. Ainda acrescentavam, algumas vezes, ele era visto lá pelas bandas da estrada que dava nas barrancas do Forqueta,  com a inseparável vara de pescar. Com a voz quase num sussurro,  para não ficarem comprometidos, relatavam ainda ouvirem estalidos no capoeirão, pois a Jaguatirica o acompanha.
Ainda bem que eu cresci. Superei o medo. Mas lembro com carinho dessas histórias contadas há muito tempo atrás. Entendi que há histórias  que são fatos reais e outras que sevem para o entretimento em dias de chuva.
Hoje, conto para os meus netos como uma das lendas tantas vezes relatadas pelo tataravô deles.
Serve para atiçar a imaginação.

 

 
 
Poema publicado no livro "Livro de Ouro do Conto Brasileiro Contemporâneo" - Agosto de 2017