Wagner Dias de Souza
Rio de Janeiro / RJ

 

 

O beijo suspenso

      

            Era quarta-feira do mês de junho, tarde que antecedia o feriado de Corpus Christi. Católico, Olavo entra na paróquia de São Francisco Xavier do Engenho Velho. No interior da igreja, era montado um grande tapete, de sal grosso e serragem, em comemoração à data religiosa. Alheio à agitação dos voluntários que davam retoques finais na escultura que ornava toda a extensão da passagem central do templo, ele senta-se em um dos bancos do local e fecha os olhos em meditação. Minutos depois, toma uma decisão bastante delicada e ao mesmo tempo importante: separa-se de Keila, sua companheira de muitos anos, mas que já não fazia sentido estar junto dela.
            Ao sair da igreja, Olavo reserva, para o dia seguinte, uma mesa num dos melhores restaurantes da cidade, com visão panorâmica do mar e convida sua amada para um jantar, prontamente aceito.
            Chegando ao restaurante, Keila se encanta:
            - Amor, que lugar lindo! Que visão!  A que devo essa honra?
            - Keila, te trouxe aqui porque… porque preciso dizer algo que está no meu coração, venho adiando, mas não posso deixar passar de hoje.
            - Hummm… Que romântico! Estou curiosa. Conta logo!
            - Sempre gostei muito de você. Vivemos momentos maravilhosos, deliciosos… mas agora não dá mais. O meu amor por você se modificou.
            Num misto de tristeza e incredulidade, Keila pergunta:
            - Amor, pode esclarecer melhor o que está querendo dizer com isso?
            - Quero me separar de você.
            - O quê? Você me trouxe neste lugar maravilhoso para dizer isso? Que não me quer mais? E o nosso amor? A nossa relação?
            - Já não há mais afeto. É somente sensação, vício, mania, desejo desarvorado de reviver algo que ficou no passado. Não é mais possível te amar como amei um dia. O melhor para nós é a separação.
            - Não acredito no que estou ouvindo, Olavo. Meu amor, eu te quero, eu te preciso. Não sei viver sem você. O que será de mim? Eu não tenho mais ninguém nesse mundo. Vai me deixar sozinha? Vai me abandonar, é isso?
            - Keila, olhe para você. Esse teu apego está acabando com nós dois. Você sabe que não dá mais. É só fantasia. Não quero viver mais essa ilusão.
            - É. Depois de usar o produto, se fartar do conteúdo, joga a inútil embalagem no lixo. Enjoou do doce, joga fora…
            - Não fale assim. Você sabe que não é um produto e que não te usei. Muito te amei, é diferente. Sempre lhe fui fiel, você sabe muito bem. Compartilhamos momentos maravilhosos, que jamais se apagarão de nossas memórias. Só que o nosso tempo acabou. Não há mais condições de ficarmos juntos, só isso.
            - Simples assim! Fizemos juras de amor eterno…
            - Eterno enquanto compartilhássemos uma vida. A separação é o melhor neste momento, acredite! Dê tempo ao tempo. Você logo entenderá a realidade.
            Aparentemente conformada, Keila sugere:
            - Dorme comigo esta noite.
            - Não, Keila. Melhor nos despedirmos aqui.
            Ela mira o mar e sugere:
            - Então que seja diante do mar. O céu está lindo, estrelado. Quero que esse seja o cenário do nosso adeus.
            Olavo concorda.
            Já na areia, de frente para o mar, Keila o encara. Pede-lhe um beijo. Olavo consente. Ela o beija com volúpia. Temendo uma recaída, Olavo interrompe o ato abruptamente:
            - Chega, Keila! Preciso partir. Fique em paz.
            - Paz? Paz! Paz… Keila repete a palavra algumas vezes, com diferentes entonações. Lágrimas sentidas rolam por seu lânguido rosto, logo se transformando num compulsivo choro. Ela vai perdendo as forças. Aperta forte a mão direita de Olavo. Vagarosamente vai se abaixando, como se definhando, deslizando as mãos ao longo da perna direita do amado, até postar-se sentada na areia e ficar diante do mar, com olhar perdido na direção do horizonte.
            Olavo aproveita o momento de calmaria para afastar-se da ex-mulher, caminhando em direção ao calçadão.
            - Adeus, adorável ilusão.

 

O amor é liberdade.
Desate-o de suas amarras
Deixe-o livre pelos céus voar
Para um dia revê-lo crescente
Em novo momento,
Diferente patamar.

O amor eterno é sublimar
Quando não há desejo dele se apossar;
Saber a sua individualidade respeitar,
Entender o seu desejo de sozinho respirar.
Porque o amor liberto, satisfeito ficará e,
 Em dia feliz, quiçá tornará a lhe encontrar.

 

 
 
Poema publicado no livro "Livro de Ouro do Conto Brasileiro Contemporâneo" - Agosto de 2017