Julio Novaes
Pindamonhangaba / SP

 

 

Nantahala

      

           

            O verão de 1968 prometia que seria intenso, e no final do mês de junho, durante o jantar de domingo, Earl perguntou ao filho David e a esposa Reba:
               - Que tal irmos acampar na semana que vem?
                -Semana que vem? Sim, podemos, sem problema – concluiu Reba depois de pensar um pouco.
               -  Vamos para o norte? – perguntou David.
               -  Vamos para a Carolina do Norte...
               -  Mas porque tão longe? Reba interrompeu.
                - Nós já fomos para lá uma vez, quando David tinha 2 anos, já está na hora de voltar – disse Earl. Continuou: - Podemos levar mais dois amigos, quem você quer levar? – perguntou ao David.
               - O Ken e o Scott...
               - Ok!  Vamos para Nantahala.
                Apesar da região onde morava existirem muitos lugares propícios para acampar, Earl gostava de se aventurar e o parque nacional de Nantahala que fica próximo à fronteira com a Georgia, era ideal para isso.  Um lugar deslumbrante com lindas áreas verdes, rios límpidos com corredeiras impressionantes e imensas áreas para montar uma barraca de camping.
               Marcaram para o começo de julho a viagem.
                Saíram cedo, por volta das 8 horas, numa segunda feira. Earl passou na casa do irmão Charles onde o primo Ken o esperava, Scott não pode ir com eles devido a alguns problemas na escola.
                A viagem levou um pouco mais de 5 horas, passando por Chatanooga, no estado do Tenneessee, eles pararam numa lanchonete para fazer um lanche e descansar um pouco. Chegaram por volta das duas horas da tarde no local predileto, às margens do Rio Hiwassee, depois da longa viagem no intenso calor do mês de julho. Pararam bem próximo a uma cachoeira. Earl não perdeu tempo e já colocou todos para trabalhar e logo a barraca estava montada. Naquele dia não havia mais ninguém por perto acampado, o dia quente deu lugar a uma noite com uma brisa suave e fresca que vinha do lado da queda de água. Earl acendeu uma fogueira e foi inevitável que os meninos se sentassem ao redor do fogo, para ouvir as histórias que ele gostava de contar, enquanto Reba preparava um lanche reforçado no interior da barraca. Ken foi logo perguntando por que o lugar tinha nomes complicados, como o próprio parque. Earl era um homem bem informado, tinha a resposta para a pergunta e muito mais...
                Ele foi logo explicando que a região do parque era habitada por índios Cherokee desde muitos anos atrás, por isso os nomes diferentes. O nome Nantahala significava “terra do sol do meio dia”, por que os vales profundos por onde os rios correm, só recebem a luz do sol a partir do meio dia. - Amanhã vocês podem conferir... – disse Earl.
                Reba também ouvia com atenção o que o marido dizia e logo em seguida ela chamou todos para comerem. Depois de saborearem os sanduiches de rosbife e tomate, ela convidou a todos a ir direto para a cama, ou melhor, para os sacos de dormir.
                Apesar de ser quase dez horas, a noite estava clara, o pôr do sol ainda era recente. Earl pegou um balde e foi até o rio enchê-lo com a água pura que parecia brotar das pedras imensas do lugar. Parou a observar o luar manso de uma lua tímida que tentava refletir nas águas calmas do rio, mas algo diferente acontecia. Ele era um experiente caçador, a floresta não escondia segredos. Enquanto enchia o balde, olhava ao redor e o silêncio da noite que chegava não era normal, nenhum grilo, nenhum inseto, nenhum barulho! Aquilo o deixou preocupado e alerta, sabia que algo de anormal acontecia, e ele tinha certeza que era algum animal fora de seu habitat natural. Ele voltou com calma para a barraca, foi direto até sua mochila e pegou seu rifle de cano longo calibre 38, uma das armas que ele sempre levava. Reba percebeu e perguntou:
               - O que foi que houve Earl?
               Ele se virou com calma, olhou ao redor e perguntou:
               - Onde está Ken?
               - Ele foi fazer xixi...
                Earl não deixou que Reba terminasse a frase e saiu rapidamente, deixando-a mais preocupada.
               Foi atrás do sobrinho. Achou-o logo ali perto e disse em voz baixa:
                - Ken!! Já fez xixi? Venha comigo rápido – o sobrinho se assustou, mas não questionou o tio e o seguiu.
               Chegando à barraca:
               - Earl, o que está acontecendo? – perguntou Reba.
                - Eu já volto, não saiam da barraca! – e tornou a sair. Reba ficou sem entender nada.
                Ele foi até a fogueira e colocou mais lenha, todos os pedaços de madeira que achou por perto, sem largar a arma.
               Voltou para a barraca depois que o fogo já estava alto:
                - Pode me explicar agora o que está acontecendo? – Reba questionou meio irada, mas sem levantar a voz.
               - Tem algum animal por perto que não é bem-vindo!
               - Como assim?! Que animal?
                - Não tenho certeza, mas possivelmente seja um leão da montanha – ele respondeu com sua calma peculiar.
               - O que você vai fazer?
               Nisso os meninos já estavam com os olhos bem abertos e assustados.
                - Calma! Não vou fazer nada, por enquanto. Vamos aguardar que ele vá embora.
                - E se isso não acontecer? – Reba perguntou abraçada aos meninos.
                 - O fogo vai espantá-lo. Mas se isso não acontecer, tenho duas armas para nos defender, não se preocupem – Earl respondeu com segurança.
                 - Como você tem certeza que é um leão da montanha? – perguntou Reba, ajustando a chama do lampião.
                - Certeza não tenho, mas a floresta mostra que seja um deles...
                - Como que o senhor sabe disso, tio? – Ken perguntou.
                 - Eu frequento a floresta desde quando tinha a sua idade, meu pai sempre me levava nas caçadas, e com isso aprendi a ouvir os sons que ela tem, ou quando não tem, como agora. Isso mostra que algum animal que não seja desse ambiente está por perto...
                 - Por que o senhor acha que seja um leão da montanha? – David resolveu interagir também.
                 - Nesse parque, o único animal predador que há por aqui, e que vive nas montanhas mais altas, é o leão da montanha, às vezes ele desce a procura de comida, e isso é o que possivelmente aconteceu hoje...
                - O senhor já viu um de perto? Como ele é? – David estava curioso.
                 - Na realidade, o leão da montanha não se parece com um leão africano, ele é mais parecido com um puma, às vezes é confundido também com leopardo, é um pouco menor, mede cerca de um metro e meio de comprimento, mas é muito rápido. E, já vi algumas vezes esse enorme gato quando participei de caçadas no norte do Tenneessee.
                 Os minutos foram ficando cada vez mais longos e o silêncio da floresta era assustador. Earl engatilhou o rifle e as crianças se assustaram com o barulho repentino, ele disse em seguida:
                - Vou colocar mais lenha na fogueira, fiquem aqui!
                - Tome cuidado Earl – disse Reba.
                - Não se preocupe! Já volto.
                 Ele pegou a lanterna e saiu iluminando ao redor da barraca. Pegou mais alguns pedaços de madeira seca e colocou na fogueira que dava sinais de enfraquecimento. Aquilo não era bom, pois a única coisa que poderia afugentar o leão era o fogo alto ou que ele se sentisse em perigo, e, para isso, Earl precisava avistar o bicho e tentar assustá-lo com alguns tiros, ele não tinha a intenção de acertá-lo, mas se isso fosse preciso, não hesitaria. Então, o experiente caçador começou a prestar mais atenção ao redor e, de repente, viu entre os arbustos, próximo ao rio, não apenas um leão, mas três, deveria ser uma família e aquela visão o deixou preocupado. Como resolveria aquela situação, sabia que os animais já haviam percebido a presença dele ali, e tinha que pensar rápido numa solução. Ele apagou a lanterna e ficou ali olhando os bichos e pensando o que deveria fazer, mas a mão divina resolveu ajudá-lo. Subitamente, um enorme porco do mato apareceu correndo quase perto dos leões, indo em direção ao lado oposto de onde eles estavam, óbvio que os três felinos saíram ao encalço do pobre porco, que com certeza seria o jantar daquela noite. 
                 Earl tinha que certificar que os felinos não voltariam a perturbar a noite de sono dele e dos outros. Voltou para a barraca:
                - O que aconteceu? Eu ouvi barulho. Perguntou Reba.
                - Parece que os gatinhos foram embora!
                - Gatinhos!?  Que brincadeira é essa?
                - Desculpe! Modo de dizer. Eles foram atrás do jantar...
                Reba o interrompeu:
                - Como assim foram!?
                 - Eram três leões, provavelmente uma família. Um porco do mato apareceu de repente e eles o seguiram, acho que não voltarão mais, pelo menos hoje estaremos seguros.
                - Como o senhor tem certeza disso? – perguntou David.
                 - A floresta nos revela certas certezas que só quem a conhece pode entender, e isso vocês irão entender também um dia, depois que passarem noites e mais noites nela como eu passei nesses anos todos. Assim, podem acreditar, eles não nos incomodarão mais essa noite e nas outras também – concluiu Earl com sabedoria.
                 Os meninos sentiram confiança na resposta do sábio homem, mas no fundo tinham dúvidas, queriam acreditar nas palavras de alguém experiente como Earl, mas ninguém se atreveu em questionar mais nada, foram se acomodando em seus sacos de dormir, enquanto Earl se ajeitava numa cadeira com uma das armas na mão.
                 O amanhecer do dia seguinte foi lindo, e logo pela manhã chegaram mais duas famílias para acampar próximo a eles, em ambas havia um garoto da mesma idade de Ken e David e não foi surpresa que se juntassem a eles para brincarem. Acabaram que as famílias se entrosaram tão bem que os dois dias seguintes foram uma só festa. Os peixes que Earl pescava viravam motivo de uma reunião entre todos na hora das refeições. Os leões realmente não voltaram e os dias foram bem aproveitados.

 

 
 
Poema publicado no livro "Livro de Ouro do Conto Brasileiro Contemporâneo" - Agosto de 2017