Maria Rita de Miranda
São Sebastião do Paraíso / MG

 

 

Meu querido, meu velho, meu amigo

      

           

          Minhas recordações dele são de data muito remota. Não de sua fisionomia em si, mas de uma chinelada aqui e ali, por eu ter falado, ainda que sem entender o que havia dito, um palavrão. Acho que esse fato foi muito comentado em minha família, pois ele não batia nos filhos. Devia estar num dia daqueles. Tínhamos muito respeito (ou medo) por ele. Um gesto seu ou um olhar, já nos colocava nos devidos lugares. Palavrão, em minha casa, era proibido.
          Por que será que sempre achamos nossos pais velhos? Sei que não era, porém o via assim. Pequeno em estatura, mas de um espírito enorme, comandava a nossa família com pulsos de ferro. Era culto sem ter cursado a faculdade. A leitura, principalmente dos jornais, as notícias ouvidas pelo rádio, os filmes que assistia, davam-lhe bagagens suficientes para discutir qualquer assunto. Era pertinente no falar.
          Cresci nesse ambiente de família patriarcal. Tinha-nos debaixo dos olhos e suas vontades sempre se faziam valer. Ele era carinhoso sem, na verdade, acarinhar. Sabíamos que tudo de que precisássemos, dava um jeito de nos proporcionar. Não conseguia qualificá-lo: se bravo, exigente, autoritário, generoso. Quando saía de casa vestido com o terno de linho claro, geralmente para ir à fazenda, tudo se modificava. Brigávamos, fazíamos tremendas algazarras visto que erámos muitos irmãos. Minha mãe é que aguentava tudo. Bastava ele retornar e água era jogada no fogo. Todos nós comportados com cara de santinhos.
          Ele pegava “O Estado de São Paulo”, sentava-se ora no alpendre da casa ora esticado em sua cama e ali lia durante muito tempo. Jamais o incomodávamos. Eu, particularmente, achava muito importante as folhas do jornal, que lidas, eram descartadas ao chão até terminar o grosso caderno. Admirava sua capacidade de concentração.
          Era um cinéfilo. Frequentava diariamente o Cine São Sebastião. Desde muito cedo ouvia os comentários que fazia dos filmes. Deixava nas entrelinhas, que só compreendi mais tarde, que os bons filmes eram um meio de nos instruir. Através das narrativas, ficávamos conhecendo lugares, costumes de outros povos, as diversidades e situações que jamais conseguiríamos ver e conviver pessoalmente.
          Lembro-me das muitas vezes, aí já era crescida, das histórias de sua vida que nos eram contadas. Do desbravamento do Morro Vermelho, das dificuldades financeiras, da perda de três filhos enquanto bebês, do sofrimento, da superação. Dizia que nenhuma pessoa tem privilégios. A tempestade cai sobre qualquer um.  Ouvíamos, na maioria do tempo, calados, apenas assimilando mais uma lição de vida.
          Sua pessoa era presença. Não passava despercebido em lugar algum. Os conhecidos eram também amigos que o admiravam pela maneira peculiar que ele tinha de ver, sentir ou reagir a fatos inusitados.
          Viveu numa verdadeira sucessão de batalhas vencidas ao longo de muitos anos. Conseguiu passar para todos os que com ele conviveram, o sentido de responsabilidade, de justiça, de honestidade e a importância de semearmos o que queremos colher.
          Da velhice tinha apenas um medo: dependência. Queria, a todo custo, se manter lúcido. Isso lhe foi negado. Por dois longos anos, depois de sofrer um espasmo cerebral, deixou de ser o que era. Cuidador, teve que ser cuidado. Forte, se tornou frágil. De ativo, inapto. Foi assim o fim da vida presencial deste homem responsável por nos desvencilhar o jogo da vida.

 

 
 
Poema publicado no livro "Livro de Ouro do Conto Brasileiro Contemporâneo" - Agosto de 2017