Poesia publicada na Antologia de Contos "Magia e Encantamento" - Julho de 2012



 

Rozelene Furtado de Lima
Teresópolis / RJ

 

 

O bife de panela dela


Onde há uma saudade,há sempre uma lição de vida.
Onde há competência,há muita determinação.
Onde há família,há sempre muita história.
Onde houver quem escreva,haverá sempre leitores.
Ainda que, de uma simples receita....

O dia em que chegávamos em casa e ouvíamos, já de longe, a voz da minha mãe cantando desafinadamente e baritonada: “Com minha Mãe estarei / na Santa Glória um dia / junto a Virgem Maria / no céu, no céu, triunfarei”... Sinal de que alguma coisa não estava bem. Ela deveria estar muito aborrecida!”.
Hora de chegar devagar, com cuidado, entrar e procurar ajudar sem perguntar nada. Sentíamos como se fosse uma sirene disparada sinalizando ‘p e r i g o’. Era um tal de trazer lenha para o fogão, colher frutas e colocar na cozinha, descascar batatas... Cada um tratava de fazer rapidamente qualquer coisa para agradar, buscando aliviar o sofrimento anunciado naquele cântico desentoado. Ela estava muito nervosa! Às vezes ela ficava parada como se o disco tivesse com defeito e repetia sem cessar “um dia... um dia... um dia... um dia...” cada vez mais alto e mais desafinado... ficávamos desolados, a situação era grave.
Certa vez cheguei em casa e lá estava ela em:- /Um dia ...um dia... um dia.../ Entrei, deixei meus livros e voltei rapidamente para a cozinha. Ela parou de cantar, olhou-me demoradamente, e de repente... ergueu os braços. Em uma das mãos uma faca comprida de cozinha e na outra um soquete grande de madeira. Fiquei estarrecida e perplexa... E ela gritou com todas as suas forças, num tom sem desafinar, de uma forma que até D. Pedro I ficaria envergonhado e diminuto.
-“Quero a minha liberdade, quero a minha independência”!!!...
Percebi que ela tinha atingido o patamar do cansaço, do estresse e conseguiu abrir o portal da alma para reclamar os seus direitos, com coragem e expressar seus sentimentos aos gritos. Eu, amedrontada, continuei calada. - E ela - “/ no céu, no céu, triunfarei /”,baixou os braços e voltou a preparar o delicioso e rápido bife de panela que só ela sabia fazer.
Aquela encenação ficou gravada na minha mente, e em mais algumas que também assistiram ao triste espetáculo. Para ela foi um desabafo, para mim uma aula que fui compreender muitos anos mais tarde. - Que a sobrecarga é uma escravidão e conduz a sentimentos negativos como raiva, ódio e revolta. - Que a liberdade e a independência têm que ser conquistadas, nem que seja no grito. - Que esta conquista é individual e de dentro para fora. - Que no momento em que ela baixou os braços e voltou à canção, ela tinha conseguido se desprender do motivo que a tinha conduzido àquele estado de subjugação, resgatado seu ânimo e autocontrole. E que liberdade e independência são sinônimos de paciência, tolerância e flexibilidade.
Já adultos, quando encontrávamos a mãe meio irritada começávamos um coral em voz alta “de taquara rachada”, bem desafinados a cantar: “Com minha Mãe estarei, o mau humor desaparecia dando espaço para risadas sonoras. E num desses dias ela resolveu nos dar a receita do bife de panela que era uma das inúmeras especialidades dela: O bife de panela.
Ingredientes são os componentes que fazem a ponte para o paladar, se bom ou ruim depende de quem come e do tamanho do jejum. Um quilo de carne bem macia, cortada em bifes pequenos; três colheres de trigo; uma cebola grande bem picadinha; oito tomates maduros cortadinhos; uma colher rasa de sobremesa de sal; duas colheres de vinagre. Três dentes de alho duas colheres de óleo para o refogar . Preparar numa vasilha espaçosa, unir a carne com todos os ingredientes, num ritmo de samba, mexer bem para que fiquem inseparáveis. Numa panela de barro refogar o alho no calor da emoção, esmagado para perder a caracterização de dentes, até alourar. Imediatamente deitar a carne já saborizada, gostosamente maquiada e pronta para o ritual alquímico. Ir acariciando, com uma pá, até formar e soltar um caldo consistente e depurar em fogo baixo de sete a onze minutos. A manutenção da temperatura e o tempo de permanência no fogo é o grande segredo deste prato. Servir da forma mais sofisticada possível. Ficar a mercê da criação e deixe a imaginação fluir sem censura. E para acompanhar é só convidar batatas cozidas com casca recheadas com queijo.
Obs. Os nervos da carne devem ser afrouxados com leves batidinhas de soquete até ficarem totalmente amaciados, preparados assim, para o momento mágico da criação. É uma iguaria com qualidades principais: sabor e prazer produzidos e servidos com amor.


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