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Rozelene
Furtado de Lima
Teresópolis / RJ
Onde
há uma saudade,há sempre uma lição de vida.
Onde há competência,há muita determinação.
Onde há família,há sempre muita história.
Onde houver quem escreva,haverá sempre leitores.
Ainda que, de uma simples receita....
O dia em que chegávamos em casa e ouvíamos, já
de longe, a voz da minha mãe cantando desafinadamente e baritonada:
“Com minha Mãe estarei / na Santa Glória um dia
/ junto a Virgem Maria / no céu, no céu, triunfarei”...
Sinal de que alguma coisa não estava bem. Ela deveria estar muito
aborrecida!”.
Hora de chegar devagar, com cuidado, entrar e procurar ajudar sem perguntar
nada. Sentíamos como se fosse uma sirene disparada sinalizando
‘p e r i g o’. Era um tal de trazer lenha para o fogão,
colher frutas e colocar na cozinha, descascar batatas... Cada um tratava
de fazer rapidamente qualquer coisa para agradar, buscando aliviar o
sofrimento anunciado naquele cântico desentoado. Ela estava muito
nervosa! Às vezes ela ficava parada como se o disco tivesse com
defeito e repetia sem cessar “um dia... um dia... um dia... um
dia...” cada vez mais alto e mais desafinado... ficávamos
desolados, a situação era grave.
Certa vez cheguei em casa e lá estava ela em:- /Um dia ...um
dia... um dia.../ Entrei, deixei meus livros e voltei rapidamente para
a cozinha. Ela parou de cantar, olhou-me demoradamente, e de repente...
ergueu os braços. Em uma das mãos uma faca comprida de
cozinha e na outra um soquete grande de madeira. Fiquei estarrecida
e perplexa... E ela gritou com todas as suas forças, num tom
sem desafinar, de uma forma que até D. Pedro I ficaria envergonhado
e diminuto.
-“Quero a minha liberdade, quero a minha independência”!!!...
Percebi que ela tinha atingido o patamar do cansaço, do estresse
e conseguiu abrir o portal da alma para reclamar os seus direitos, com
coragem e expressar seus sentimentos aos gritos. Eu, amedrontada, continuei
calada. - E ela - “/ no céu, no céu, triunfarei
/”,baixou os braços e voltou a preparar o delicioso e rápido
bife de panela que só ela sabia fazer.
Aquela encenação ficou gravada na minha mente, e em mais
algumas que também assistiram ao triste espetáculo. Para
ela foi um desabafo, para mim uma aula que fui compreender muitos anos
mais tarde. - Que a sobrecarga é uma escravidão e conduz
a sentimentos negativos como raiva, ódio e revolta. - Que a liberdade
e a independência têm que ser conquistadas, nem que seja
no grito. - Que esta conquista é individual e de dentro para
fora. - Que no momento em que ela baixou os braços e voltou à
canção, ela tinha conseguido se desprender do motivo que
a tinha conduzido àquele estado de subjugação,
resgatado seu ânimo e autocontrole. E que liberdade e independência
são sinônimos de paciência, tolerância e flexibilidade.
Já adultos, quando encontrávamos a mãe meio irritada
começávamos um coral em voz alta “de taquara rachada”,
bem desafinados a cantar: “Com minha Mãe estarei, o mau
humor desaparecia dando espaço para risadas sonoras. E num desses
dias ela resolveu nos dar a receita do bife de panela que era uma das
inúmeras especialidades dela: O bife de panela.
Ingredientes são os componentes que fazem a ponte para o paladar,
se bom ou ruim depende de quem come e do tamanho do jejum. Um quilo
de carne bem macia, cortada em bifes pequenos; três colheres de
trigo; uma cebola grande bem picadinha; oito tomates maduros cortadinhos;
uma colher rasa de sobremesa de sal; duas colheres de vinagre. Três
dentes de alho duas colheres de óleo para o refogar . Preparar
numa vasilha espaçosa, unir a carne com todos os ingredientes,
num ritmo de samba, mexer bem para que fiquem inseparáveis. Numa
panela de barro refogar o alho no calor da emoção, esmagado
para perder a caracterização de dentes, até alourar.
Imediatamente deitar a carne já saborizada, gostosamente maquiada
e pronta para o ritual alquímico. Ir acariciando, com uma pá,
até formar e soltar um caldo consistente e depurar em fogo baixo
de sete a onze minutos. A manutenção da temperatura e
o tempo de permanência no fogo é o grande segredo deste
prato. Servir da forma mais sofisticada possível. Ficar a mercê
da criação e deixe a imaginação fluir sem
censura. E para acompanhar é só convidar batatas cozidas
com casca recheadas com queijo.
Obs. Os nervos da carne devem ser afrouxados com leves batidinhas de
soquete até ficarem totalmente amaciados, preparados assim, para
o momento mágico da criação. É uma iguaria
com qualidades principais: sabor e prazer produzidos e servidos com
amor.
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