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Afrânio José de Melo Junior
Nilópolis / RJ

 

Infelicidade estratificada

João é mendigo e não tem nada. Considerado o lixo da sociedade, humilha-se pedindo esmola nos sinais de trânsito e come restos de alimentos misturados com fezes, urina ou o que mais se encontre em papéis higiênicos usados. Faz algum tempo que não lhe passa pela cabeça qualquer vaga ideia do que seja a felicidade. Uma vez perdida a esperança de maneira irremediável, tais pensamentos já não fazem sentido algum.

João procura deixar claro, sempre que possível, que tem uma esposa e a ama. Nunca a traiu e a trata com uma ternura comparativamente exemplar. O casamento feliz é citado como referência em cem por cento das rodinhas de amigos, induzindo sentimentos que circulam no limite tênue entre a admiração e a inveja. ``Como deve ser maravilhoso o sexo desses dois!'', pensamentos ocultos costumam conjecturar. Na maioria das vezes em que transa, João imagina o rosto de outras mulheres. Ouve a voz de outras mulheres. Fantasia situações com outras mulheres. Um de seus maiores medos é proferir por engano o nome de alguma delas e arruinar sua vida.

João está sempre sozinho: é o típico solteirão que não tem a menor habilidade para atrair companheiras. A relativa estabilidade profissional, financeira e a boa saúde coexistem com a inexistência, por largos períodos de tempo, de qualquer tipo de relação amorosa. Por fora é uma pessoa feliz e sem dúvida possui uma paz almejada por muitos. Por dentro cultiva uma melancolia das mais tristes que um homem pode sentir.

João vive cercado de mulheres. Sua auto-estima não poderia ser mais elevada, o que se reflete no semblante firme e confiante que impõe a todos. Não costuma permanecer muito tempo com uma mesma parceira, e a impressão passada por essas constantes trocas é de que está empenhado na busca incessante por algum tipo de idealização. Do que encontrou até hoje, nada o levou a qualquer sentimento diferente da frustração. Conscientemente consegue evitar a rotina aborrecida da monogamia e já há muito se enfastiou da repetição que constitui a própria maneira de viver. Experimenta em seu cotidiano uma das formas mais inusitadas de tédio, aquele causado pela excessiva diversidade.

João é mega-empresário e sua fortuna ultrapassa dois bilhões de dólares. Segundo a concepção usual de mundo, já obteve tudo que um homem poderia desejar. Sua existência, agitada e imponente, resume-se a um contínuo tormento causado por uma ilusão inevitável de felicidade. João acredita que essa felicidade norteia toda sua vida, apesar de nunca ter percebido o quanto é efêmera, por surgir-lhe artificialmente apenas nos momentos em que nela pensa. O resto de seus instantes pode ser descrito como um misto de amarguras, decepções, exaltações e um contraditório sentimento de impotência perante o mundo.
   
Publicado no livro "Nó em pingo d'àgua" - Edição Especial - Abril de 2015