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Isabel Fonseca de Assis
Niterói / RJ

 

O ás do novo amor

Já estava decidido. Não existiam mais argumentos que a fizessem voltar atrás. Estava cansada das mensagens que ele trocava com outras mulheres e das brigas que isso resultava. Ele dizia que nunca havia traído ela fisicamente. Que as mensagens eram mais pelo ego. Ela levou a situação até onde pode. E deu no que deu. Ela iria pegá-lo no flagra.
Saiu rapidamente do edifício do trabalho. Passos largos, sem qualquer desvio. Um foco no olhar, vidrado, que a faria matar se alguém se colocasse em sua frente. Humilhada ao extremo, era como estava se sentindo. Morta por dentro. Fria. Ela não confiaria em mais ninguém. "Quem vai pegar o morto?", seus pensamentos estavam a mil, como cartas de um baralho se movendo nas mãos de um croupier, onde qualquer erro em segurá-las, poderia cortar-lhe a carne, tais quais lâminas afiadas.
O Centro da cidade estava lotado. Um calor infernal, o que era comum naquela época do ano, ainda mais se tratando do Rio de Janeiro. Foi em direção ao Largo da Carioca, onde pegaria o metrô para a Zona Sul e onde o “casal” se encontrava. Seu coração disparava a cada imagem que via dele em sua cabeça. Um calafrio percorria seu corpo, apesar do ar abafado. Calafrios de ódio.
Quando estava prestes a descer as escadas rolantes do metrô, um homem alto e forte, parou em sua frente. Instintivamente, ela deu um passo para trás e agarrou a bolsa. Levou um susto. Já fora dos devaneios psicopatas, ela olhou o homem que sorria gentilmente oferecendo-lhe uma rosa. Estava vestido de mágico. Ela deu um sorriso forçado e com a mão recusou, sem dar uma palavra. Ele continuou bloqueando seu caminho.
- Bela senhorita, já que não quis aceitar a rosa, poderia me fazer um favor e tirar uma carta do baralho?
- Desculpe. Eu realmente preciso ir. E não estou vendo baralho algum em sua mão. – Respondeu ela. Então ele movimentou a rosa em suas mãos e ela tornou-se um baralho. “Claro, óbvio”, pensou.
- Por favor, retire sua carta. Só vai levar um minuto.
Relutante, ela retirou a carta. O Ás de Copas. “Hum... Que ótimo momento para eu tirar uma carta com corações”, revirou os olhos em silêncio. Entregou a carta a ele.
- E agora?
Ainda sorrindo e colocando a carta de volta nas mãos dela, ele respondeu:
- É sua. – E saiu andando no meio da multidão.
- Mas...
Não deu tempo de questionar. Ele simplesmente desapareceu no meio de tantas pessoas e artistas de rua que, agora com mais calma, reparou que se encontravam aos montes naquele local. Olhou a carta novamente e respirou fundo. “Hora de voltar ao assunto de antes”. Quando, novamente, deu um passo em direção à escada rolante (já que havia se desviado com o mágico para dar passagem às pessoas), dessa vez fora uma mulher, vestida de cigana, quem a parou.
- Por que você está segurando uma carta de baralho na mão? – Perguntou-lhe.
- Ah, foi um mágico que me deu. Apesar de eu ainda não ter entendido a mágica. Enfim... – E deu de ombros.
- Posso vê-la?
- Por que não? – Disse ela, já cansada demais para discutir qualquer coisa.
O rosto da cigana mudou. Ela era baixinha e rechonchuda. Dessas que a gente vê em filmes, uma roupa vermelha e colares pesados, com moedas douradas. Bem característico. A cigana olha para ela.
- Você vai descobrir o amor em breve. Posso te adiantar que será ainda hoje. – Sorriu. Devolveu a carta para ela e saiu andando. Ela viu a cigana se sentar com alguns outros colegas, crendo serem ciganos também. Riu nervosamente. “Coitada! Deveria tentar outra carreira”, pensou.
Desistiu de pegar o metrô. Dois loucos a pararam, vai que é um aviso. De qualquer forma, dava tempo de pegar um ônibus. Desceu a rua e esperou. Logo veio o que precisava. Subiu. Ao abrir a bolsa para pegar o dinheiro da passagem, a carta caiu no chão. Ela pagou e depois abaixou-se para pegar a mesma. Com a pressa, para que os outros passageiros pudessem entrar, ela acabou cortando a mão na lateral da carta, fez uma careta e colocou o dedo na boca, para estancar o sangue.
Sentou-se na janela. Ficou olhando as pessoas e os prédios passarem na maior lentidão. Engarrafamento. Era melhor ter pego o metrô. Não iria chegar a tempo. Baixou os olhos e olhou para as mãos. Ainda segurava a carta. Começou uma análise minuciosa da mesma, já que não tinha algo melhor para fazer. A carta era de um baralho comum, fina e brilhante. De um lado o Ás de Copas, do outro, minúsculas letrinhas aleatórias, como se fossem um caça-palavras. Fundo branco e letrinhas azuis. A princípio ficou olhando fixamente para aquele retângulo cheio de letras, sem que formassem qualquer palavra ou sentido. Exatamente como sua vida, pensou. Uma bagunça sem sentido. Impossível aquela cigana ter visto amor em seu destino, ainda mais naquele dia. Pelo contrário, ela estava indo acabar com o amor.
O ônibus freia. Ela olha para frente e ajeita-se no banco. Finalmente já estão na orla. Levanta a carta à altura dos olhos e um reflexo da luz do pôr-do-sol, vindo da janela, ilumina uma parte das letrinhas. Ela consegue ler duas únicas palavras (pois já havia procurado de todos os jeitos possíveis): AMOR PRÓPRIO. Assim mesmo. Uma ao lado da outra.
A primeira sensação é de susto. Fica atônita olhando para as palavras na carta, até que a pessoa ao seu lado passa a olhar para ela com curiosidade. Ela se remexe no banco. Seu coração dispara. Dessa vez, não de ódio ou humilhação, mas de alívio. Alívio de estar saindo de algo que há muito tempo lhe faz mal. Que a fazia viver insegura e infeliz. Uma lágrima solitária escorreu pelo seu rosto. Ela pega o celular e envia uma mensagem para ele, dizendo que sabia que ele estava com outra mulher e que estava tudo terminado. Enviou, junto, a foto dele com a mulher, os dois se beijando no bar para o qual ela estava se dirigido, que recebera de sua melhor amiga. Ligou para a amiga, que a encontraria lá e disse que estava indo para casa. Guardou a carta na bolsa, desceu do ônibus e sentou-se na praia, apreciando o pôr-do-sol e aplaudindo, com o coração leve, a descoberta de um novo amor.

 

 

 
 
Conto publicado no livro Quem vai pegar o morto?" - Fevereiro de 2016