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Paulo Vasconcellos
Capanema / PA

 

A fama o morto levou

        

O homem do campo ainda preserva sua naturalidade e pouco se liga à modernidade, todavia, existem aqueles que pensam diferente e se enquadram no que há de mais sofisticado. Morar em localidades do interior das cidades mantém costumes de uma geração para outra e conversar é uma das atividades mais exercitadas. Comparativamente, morar na cidade ou no interior, concretiza sonhos de homens e mulheres que buscam melhorias para seguirem seus destinos, assim por diante.
A retórica centraliza-se num pacato lugarejo que acolhia menos de uma centena de pessoas que formavam a comunidade denominada “Vila Esperança” e muitos desses moradores pertenciam a mesma família. O sisudo Anastácio Ximenes, era comissário de polícia bastante respeitado, mas mantinha bom relacionamento com todos e sempre nos fins de tarde, juntava-se a um grupo de amigos para prosear e jogar baralho, como forma de diversão. O jogo de preferência de Anastácio e seus amigos era buraco e ele ganhou notoriedade como jogador, somando pontos que o deram a patente de campeão.
Com o passar do tempo, aumentou o número de jogadores que formaram equipes consideradas favoritas, onde quer que se apresentassem e Anastácio continuava com sua fama de bom jogador. Formavam o grupo de moradores de Esperança, alguns chefes de famílias, tais como: Honorato Xavier, Efraim Gouvêa, Policarpo Anselmo, Militão Batista, Tertuliano Gonçalves, Jofre Santana, Ismael Tolentino, além das mulheres: Clarice, Georgina, Amélia, Ana Rita, Gonçala, Terezinha e Genoveva, que também participavam dos encontros nos jogos de cartas.
Numa manhã de domingo a comunidade ficou entristecida com a morte de Anastácio e logo houve aglomeração de pessoas em frente à sua casa para se certificarem do ocorrido. Condolências à família, comentários sobre a vida do comissário, histórias de sua gente e muitos outros assuntos foram conversados durante o velório, sendo que as rezas e o cafezinho não poderiam ficar de fora.
Para homenagear Anastácio, seu primo Honorato sugeriu que fosse formada uma mesa para um jogo de buraco, ideia aceita por todos. Carta vai e carta vem, o adolescente Cornélio (sobrinho de Anastácio), chorava pelos cantos da sala, mas prestava atenção no jogo e uma frase despertou sua curiosidade: “Quem vai pegar o morto”?
O corpo de Anastácio, depositado em um caixão, enfeitado de flores, estava no meio da sala e os visitantes, prestava suas homenagens, consolando os familiares e muitas vezes tocando na testa do defunto como forma de despedida. Enquanto isso, o buraco continua e aqueles que conseguiam bater o jogo rendiam homenagens ao “craque das cartas”, que no pensamento deles, estava ouvindo tudo. O jovem Cornélio cruzava os braços e acompanhava o jogo, pois na sua opinião, ninguém queria pegar o tal morto que ele jurava ser seu tio. Sendo assim na concepção de Cornélio, como seria o traslado do caixão para o cemitério já que ninguém queria pegar na alça para conduzi-lo?
Só que uma solução surgia como melhor interpretação para Cornélio, pois ele via muita gente tocar na testa de seu tio, entretanto, as dúvidas continuavam em seus pensamentos. Ao amanhecer da segunda-feira, depois da Extrema Unção feita por padre Gabriel, começam as despedidas dos familiares e amigos, sendo o caixão lacrado para ser levado ao cemitério.
A condução era feita por 6 pessoas que se alternavam durante o traslado, acompanhado de cânticos feitos pelas mulheres que frequentavam a capela do lugarejo. Foi aí que Cornélio percebeu que a história do tal morto, nada tinha a nada ver com o corpo de seu tio Anastácio. Para se certificar da expressão “morto”, Cornélio se encorajou e perguntou a um dos homens que estava jogando buraco, recebendo as instruções sobre o que eles comentavam ao jogar cartas, referindo-se ao morto do baralho. Mesmo confuso, Cornélio tirou suas conclusões e a partir de então, juntou-se ao quadro de jogadores, aperfeiçoando-se a cada participação, considerado substituto de Anastácio.
De trocadilho em trocadilho, de analogia em analogia, de ponto a ponto, de carta a carta, de jogo a jogo, enfim, a palavra “morto”, desperta para várias reflexões, tanto no sentido de preservação da vida, como também no descarte de um bem material, preservado por quem o usa como propriedade. Em relação ao jogo de cartas, o ideal do jogador é apenas o lado da diversão, há a convicta certeza de um ato benéfico para o desenvolvimento de sua inteligência. Contudo, quando as razões se modificam e entram na questão do azar ou sorte, perdas e danos podem causar transtornos a quem pratica o jogo de cartas com intenções gananciosas para usufruir economicamente.

 

 
 
Conto publicado no livro Quem vai pegar o morto?" - Fevereiro de 2016