Romilton Batista de Oliveira
Itabuna / BA

 

 

As sombras que nos acompanham
a vida inteira

 

           

O narrador que ora toma a direção da escrita que sai de sua interior inspiração, sentado em sua poltrona a assistir em sua frustrada televisão o canal TV Câmara que anuncia várias vozes a discursar com total defesa de suas ideias que o povo está a ser enganado pela monologa voz da embaralhada Enunciação. Discursos e mais discursos, apelos e mais apelos... Assustado, o narrador percebe que o mundo que se manifesta fisicamente é subordinado à palavra. Quem melhor dominar o discurso vencerá a guerra pela disputa do poder. Cabisbaixo, o narrador pensa consigo, depois de ouvir tantas ideias a explodir em seu frágil ouvido, sentindo-se desnorteado e confuso, pensa intensamente para dentro de si, e diz a si próprio, num diálogo monológico assustador: “A presença do trauma é uma constante em nosso dia-a-dia. A criança ao nascer sente uma profunda dor, uma violência uterina, um sintoma de rejeição ao que lhe é imposto pelo mundo exterior. Ela é tocada por aquilo que chamamos de “trauma”. Depois, segue o seu desenvolvimento, crescimento, socialização, reprodução, envelhecimento e morte, todavia durante todas essas etapas, o ser humano sofre a influência diária do trauma, e nem mesmo percebe a sua presença que já se faz cristalizar ideológico-discursivamente”. Deu um sorriso, assim jocoso, e entendeu que as pessoas demoram muito tempo para pensar... Ficam horas e horas, falando, gesticulando e até mesmo sussurrando como um leão a devorar a sua presa.
Assim, cronicalizando a situação do trauma em nossas vidas, direi, não mais como narrador, mas como personagem de mim mesmo que merece o nome que tem: Traumonto Dias dos Tempos. Direi, eu, Traumonto Dias dos Tempos que não nos faltam histórias de homens, mulheres, crianças e idosos que são vítimas da violência e dos maus tratos, e que foram duramente atingidos pela chaga, marca ou sinal que se instala no corpo e na mente do sobrevivente como ferida ou cicatriz que permanece sempre aberta e em contínuo diálogo com a dualidade que circunda a existência humana: a vida e a morte. Eu mesmo carrego em mim um desespero danado que dilacera o meu interior, principalmente quando alguém ri quando eu lhe digo o meu nome. Ter um nome, é carregar em si um peso, mas ter um nome como o meu é ser um condenado sem lei, porque até que existem leis, mas elas não são obedecidas, só quando o político se interessa por algum artigo, e sai a defender em nome de tantos outros nomes espantados como espantalhos em nosso país.
A mão que escreve esse texto o escreve não aleatoriamente, mas por meio de sua própria experiência. Carrego comigo, desde o nascimento uma ferida que me dói a todos os dias, porque ela está em mim, em meu corpo como uma cicatriz que não cicatriza. Tecla com dificuldade cada letra, cada palavra, cada signo destituído de sua antiga forma saussuriana, formando enunciados que tentam um acordo com o sentido e o significado que gira em torno do tema proposto: Tempos difíceis, tempos de dor, violência e trauma. Falta de amor, de cidadania e justiça. E, nesses trâmites de desassossego humano, a narrativa da vida é ameaçada por um forte desespero de ser gente, condicionado por uma precariedade do ser que tira de cena a potência do saber/poder, impedindo que a crônica declare guerra ao sistema de corrupção montado no país onde tudo pode acontecer, onde “jagunços do mundo pós-moderno” governam os outros, estando eles sujos na lama da podridão de seu enganoso passado de desvios de verbas de nossa pobre e silenciada nação, tentando a todo custo aprovar leis que definitivamente aprisionem para sempre o poder de discussão.
Tempos difíceis... onde a violência anda de mãos dadas com a corrupção e a literatura paga um preço alto para reverter e denunciar os criminosos cobertos por um cinismo que devora até a nossa tão conquistada nacionalidade. E nem a crítica viva e ensaiada da comunicação consegue entender o motivo de tanta atrocidade em pleno Século de reconstrução e valorização dos direitos humanos, pensou Traumonto.
O narrador que digita com os seus dedos sobre o netebook, sente uma dor que é coletiva e socialmente compartilhada, reconhece que falta no homem a essência do primeiro homem criado por Deus, e concorda com as palavras do pesquisador e professor Francisco Ramos de Farias que juntamente com Glaucia Regina Vianna afirma que os seres humanos trazem consigo o ímpeto para a agressão e para a destruição, impulsos destrutivos que podem vir a ser satisfeitos ao se misturarem com outros motivos de natureza emotiva e idealista, e bebendo das águas freudianas, formula a ideia de que se o desejo de aderir à guerra é da ordem de um efeito da pulsão destrutiva, a única solução plausível para ele seria a contraposição ao seu antagonismo mais poderoso, Eros, o princípio do amor, referindo-se então ao mandamento do Novo Testamento: “Ama o próximo como a ti mesmo”. Seria essa a possibilidade dos homens compartilharem seus interesses. Caso contrário, a pulsão de morte pode caminhar em direção à destruição, provando que que os diques não forem bem construídos, com a presença de Eros, eles não serão fortes o suficiente para conter a prática da violência originada pelo desejo desenfreado do poder. E, de repente, Traumonto desmaia, e não suporta a voz de si a narrar pelos cotovelos de sua nítida coragem de estar vivo, e compartilhar com tantos outros sofridos, perseguidos e humilhados por sua pequena diferença de ser diferente, de pensar diferente, de andar diferente, de sonhar diferente, de sofrer diferente, porque, Traumonto Dias dos Tempos, já nasci sem direito a nascimento dos claros, nasci prematuramente, adivinhando que algo de estranho eu seria, algo de estranho aconteceria comigo, e foi na direção certa: fui tombado como patrimônio ferido no nome, no corpo, na mente e na representação de difícil diálogo porque eu não consigo falar pra ninguém sobre esta ferida que trago desde meu nascimento...
De repente, uma esperança renasce das cinzas das horas incertas, trazendo consigo a poesia que pacifica a guerra da vida. E ela grita com todo o seu poder de “Deusa Mnemosyne”, arrastando tudo que se encontra no imóvel sentido dos pensadores adormecidos pelo golpe dado no rastro da ditatorial narrativa que o engano trouxe para o nosso chão pisar. Desencarnados são os versos que estavam adormecidos no tempo, e a lírica da revolução sangra a narrativa monológica, imperialista e desumana, e num enxame de variadas vozes descentra o poder, arrebenta as correntes que aprisionavam os enunciados de uma única enunciação, que sem razão desgovernava o homem, tirando dele partes de sua imaginação. Traumonto é enfim, tocado pela esperança que adentra os seus pulmões como um pássaro que acaba de criar asas, pois antes não as tinha.
Um vento muito forte apodera de sua fraca mente, dando-lhe potência, fortalecendo-o novamente com as armas da libertação, construído por versos feitos de pleno gozo mitológico da desmistificada razão. Id se desespera, ego entra em crise e um superego se ergue na aglomerada confusão, reconstruindo das cinzas o discurso da multidão. O imaginário que antecedia o simbólico torna-se uno e liberta a crônica do suicídio da razão. Traumonto que já pensou em suicídio, hoje, brinca com ele em seus sonhos, e um conto distraidamente tenta sustentar o absolutismo, mas a polifonia em toda a sua potência de alteridade e autoridade que não se rompe com facilidade porque é feita de puro aço de discurso rígido, atravessa a bêbada voz que tentava imperializar a heterogeneidade de um povo que ele representa. E foi este vento, o vento invencível da liberdade de expressão que ressuscitou a poesia de antigas âncoras da escravidão, e que soprou dentro do jovem Traumonto uma nova forma de sentir e ver as coisas ao seu redor.
E o navio é lançado ao mar levando notícias para além do Atlântico, informando a toda gente de todas as partes e “quebradas” do mundo habitável que o Brasil acaba de ser novamente libertado do jugo da escravidão, pois Traumonto acaba de receber o convite para palestrar sobre a sua vida e o que ele pensa do mundo e das coisas. Ele pensou a noite inteira, antes do dia em que a multidão iria ouvi-lo. Naquela noite ele leu como nunca em sua vida, catou várias teorias que estavam a dormir e não conseguiu encontrar uma que fosse capaz de expressar a sua dor. Pensou... Pensou... Pensou... E uma voz surgiu lá de dentro de seu interior, dizendo que ele não se preocupasse com teorias porque são elas que transformaram a vida do homem neste eterno caos de discussão contínua. Basta que ele diga apenas que todo mundo é como ele, nasceu com o trauma de ser feliz e não ser feliz, de ser realizado sem nunca ter sido. E foi assim que no outro dia, Traumonto disse a todos os estudantes daquela universidade que nós só somos o que somos porque somos traumáticos por natureza, explicando a nova palavra de ordem que comandará todos os múltiplos discursos desta modernidade tardia, líquida ou pós-moderna: o trauma é inato. E ponto final. Cabe a cada um, buscar nas beiradas de sua manifestação verbal, ser um bocadinho feliz, porque na realidade, a felicidade completa não existirá porque o trauma sempre a impedirá. E os aplausos vieram, não dos vivos, mas das almas que ali em silêncio estavam a passear na plateia dos vivos. E reconheceu Traumonto que se não fosse o trauma o mundo seria um lugar inabitável, repleto de falsos sorrisos e de uma única forma de ser e sentir a vida. E mais uma alma lá no do fundo disse: “Onde há fogo, há perigo”. E mais uma outra retrucou: “Me diga com quem tu andas, que eu direi quem tu és”, E mais outra: “quem com ferro fere com ferro será ferido, e mais um amontoado de almas dispersas dizia numa única voz: “Quem nasce pra ser escritor nunca morre, vira livro”. E Traumanto sorriu com tantas vozes vindas de tantos outros mundos, e reformou a sua teoria, dizendo: Há fantasmas em todos os lados, desde o nascimento estamos vendo-os de todos os lados, porém o fantasma mais perigoso é o fantasma da traição porque daí pode muita coisa sair que nem o trauma suportará porque se foi a mulher que cometeu a traição o homem passará a andar de cabeça arrumada e repleto de torturas ou fantasminhas de uma só cor. De resto, tudo é resto, resíduo dos fantasmas que nos assombram deste tantos e tantos passados passados. O que nos sobra são as sombras que nos acompanham a vida inteira...   


(Ao professor Francisco Ramos de Farias)

 

 
 
Poema publicado no livro "Pé de pato, mangalô, três vezes!!!"- Edição Especial - Junho de 2017