Ediloy A. C. Ferraro
São Paulo / SP

 

 

O urubu e o canário

 

 

Próximo a um condomínio residencial, em terreno desocupado, entretinha-se a ave grande e escura a devorar os restos de um animal pequeno, que empesteava o ar com o mau cheiro de sua putrefação... Atarefado em saciar-se, queixava do calor escaldante sobre seu corpo e o incômodo causado pela sede. A sonora cantoria de um canário era o contraste àquela cena deprimente...
Embalado naquele cantar, embevecido o Urubu com o pequeno cantador, dono de uma sonoridade belíssima...Deteve-se para refrescar e aproximou-se da gaiola do cantador.
- Pássaro querido, de seu cantar mavioso, na plumagem dourada, és dengoso e acarinhado, por todos desejado... Saúda as manhãs com seus sons maviosos. Quanto a mim, a todos repugno, não tenho voz admirável, nem a beleza a ser notada...
Vendo-se objeto da admiração do amigo de penas, respondeu o cantante, a surpreendê-lo:
Agradeço os elogios, mas as aparências enganam. Sou cativo entre telas, do horizonte restrito observo a natureza, dela apartado, refém da minha beleza e de meu canto...Sujeito a jamais usar minhas asas, desbravando alturas, sentindo o ar em meu corpo, sendo dono de meus voos e destino. Não poderei sobrevoar as copas das grandes árvores e nem me saciar com a água dos rios, banhar-me quando quiser, construir meu ninho entre os galhos...Sentir o amanhecer nas florestas, voando de lugar a lugar...
Como?  És admirado em sua plumagem de ouro, em seus gorjeios encantadores, replicou intrigado ( pensando com seus botões, como tem gente insatisfeita com tudo, verdadeiros chorões de barrigas cheias...) Tens o alimento à mão, gaiola decorada, um adorno, um requinte... Não sabes, amigo, o que é batalhar para matar a sede e a fome, fugindo de predadores, ao relento.
Tenho, com certeza, a admiração dos humanos que me veem, dando-me a ração e a água fresca servidas, além de medicamentos para cuidarem de minha saúde e da vivacidade de minhas penas...Apraz a eles, ao deleite de suas visões, que esteja vistoso e saudável.Concluiu o canário.
Que mais queres da vida, ó avezinha insatisfeita ?  A beleza e a graça lhe foram pródigas, com bela voz  fostes abençoado... Quisera ter a sua graça e canto !
Lastimou o pequeno pássaro: o que traduzem de meu cantar, os ouvidos humanos ? Mal sabem se estou feliz ou lastimo a liberdade negada... Cantilena enfadonha, pranto feito canto, confundem minha revolta e tristeza em seus ouvidos egoístas... Sorriem para mim em satisfações próprias, enalteço a eles com a minha voz não traduzida, seja um pipilar comedido ou um choro externado, para eles tudo é graça e beleza.
Encucado o grandalhão replicou: estranho, quem te vê, balanças de lá para cá, alegrias e vivacidade demonstras ter...
Amigo, queria ter livre ir e vir, que adianta nascer para voar e ser aprisionado desde nascença? Nada vislumbrar além dos limites de minha visão, no aperto deste espaço, nesta prisão enfeitada e perpétua... Não és desejado como adorno, mas como necessário não te perseguem...Não haverão de tê-lo cativo, és livre...
 Resignado, respondeu a ave escura de bico grande : para enfeite não sirvo, livro-os dos animais mortos, meu alimento; nisso poupam-me o viver... Temos o olfato apurado, sentimos o odor no ar, e chegamos para nos banquetearmos do que querem se livrar. É como se fosse uma troca, servimos, e nos respeitam.
A triste avezinha, confidenciou: a mim que dizem amar, sou para eles um objeto bonito, um bibelô que se move e canta, alegro-os com o meu cantar, razões de minha sina e algemas, a mim e a meus irmãos engaiolados. Belos mas restritos em suas celas, distantes de sua vocação de voarem livremente. 

O preço da liberdade... Filosofou a ave grande: Devoro carniças que os incomodam, sou mau presságio para muitos, ave agourenta. Jamais me perseguem, nisso não posso reclamar, sou de utilidade pública. Um faxineiro de asas, não tenho voz bonita, nem penas vistosas, e belezas...
Suspirou o pequeno engaiolado: Mas és livre, podes ir aonde quiseres, nada te detém... Nascestes na natureza e nela morrerás. Quanto a mim, envelhecerei nestes limites, até perecer um dia, na minha solidão, sem jamais ter experimentado a destreza de minhas asas alçando voos, buscando o céu... Aliás, cativo de nascença, nem sei se saberia voar se me permitissem... Cobiças a minha ração, a água fresca servida, nesta formosa gaiola, não desejes esta prisão ! Não tenho o prazer da conquista de meu próprio alimento, como tu que o procuras ao sabor dos ventos. O desafio dos dias que justificam o valor das conquistas, dando tempero aos objetivos, fazendo sentido o viver.
Condoído, e já conformado com a sua própria situação, entendendo o prisioneiro, suspirando: Triste destino o vosso, avezinha admirada. Nada como nos querer como somos, não me querem de enfeite e isso é minha liberdade, nem me perseguem por ser útil... Enojoo a eles, bem sei, mas que interessa?  Hoje estou aqui, logo mais acolá...Posso ter a minha família, buscar o meu abrigo nas intempéries, cuidar de meus filhotes. Olha, falar contigo me foi muito proveitoso, fez-me ver o valor que tenho, a liberdade que desfruto, as vantagens que pareciam sina ruim... Quanto à beleza, interessa-me ser aceito pelo meus iguais, e na companheira de mesma espécime ser amado. Em aceno de despedida, satisfeito consigo mesmo.. E,vendo a tristeza do amiguinho, o animou:
O seu canto e beleza, não são inúteis, ajudam a adornar a vida, lenitivo para todas as dores, tens a sua importância, despertando ternura em quem te olha e escuta... Adeus !
Um sonoro canto, ou seria pranto, da avezinha prisioneira? A avistar o decolar do desengonçado visitante...

*Somos todos importantes, cada qual na sua condição...

 

 
 
Poema publicado na "Seleta de Contos de Autores Premiados"- Edição Especial - Janeiro de 2017