Gabriel Antonio Ogaya Joerke
Cuiabá / MT

 

 

Boneca de trapo, farrapo de gente

a violência simbólica escancarada em versos

            Quando falamos em violência, é comum nos limitarmos àquela que envolve força e agressão física. Os discursos que a fervilham tendem a ocorrer quando nos deparamos com fatos que nos deixam estupefatos – estupros, assassinatos, espancamentos etc. Contudo, a agressão física é tão somente uma das formas de violência. Por outro lado, tão perniciosa e dissimulada quanto aquela, se perpetua a violência, denominada de simbólica, de forma ora “natural”, ora subliminar, constituindo-se em habitus de grupos sociais. A naturalização da violência simbólica, aqui voltada para a mulher, toma uma dimensão maior, na medida em que, como tantos outros países, prepondera a dominação masculina.
             Tomarei, para análise despretensiosa, elementos do campo conceitual dos sociólogos franceses Émile Durkheim e Pierre Bourdieu e, como recurso pontual, a seguir transcrito, o samba-canção Meu vício é você, composto em 1955, pelo luso-brasileiro, Adelino Moreira de Castro (1918-2002) e, que fez tanto sucesso na interpretação de Nelson Gonçalves, entre outros.
            “Boneca de trapo/ Pedaço da vida/ Que vive perdida no mundo a rolar/ Farrapo de gente que inconsciente/ Peca só por prazer, vive para pecar/ Boneca eu te quero, com todo o pecado/ Com todos os vícios, com tudo afinal/ Eu quero este corpo, que a plebe deseja/ Embora ele seja prenúncio do mal/ Boneca noturna que gosta da lua/ Que é fã das estrelas e adora o luar/ Que sai pela noite e amanhece na rua/ E há muito não sabe o que é luz solar/ Boneca vadia de manhas e artifícios/ Eu quero pra mim teu amor só porque/ Aceito os teus erros, pecados e vícios/ Porque na minha vida meu vício é você.”
            Violência, do Latim violentia, extrapola sua dimensão física e se abre para uma tessitura mais ampla (física, sexual, psicológica, simbólica), ao mesmo tempo em que delineia seus matizes e contornos, propícios para o entendimento de suas manifestações nos diversos grupos sociais.
            Se partirmos da concepção de que a cultura é uma construção social, portanto, uma estrutura simbólica arbitrária, como nos diz Bourdieu, a qual serve de modelo para o comportamento dos indivíduos, sendo sua manutenção necessária para a ordem da sociedade, a violência simbólica – da qual trato aqui – faz parte desse todo, como elemento de poder simbólico, desenvolvido pelas instituições e pelos agentes sociais. A violência simbólica se dissemina na imposição – imbuída de caráter legítimo, embora, muita das vezes, dissimulado – de formas de pensar e sentir no processo de socialização, estabelecendo hábitus (matriz determinada pela posição social do indivíduo) condizentes com as normas dominantes.
            Anteriormente a Bourdieu, essas maneiras de agir, de pensar e de sentir, ou seja, os fenômenos que se apresentam na sociedade, com certo grau de generalidade, foram chamados pelo sociólogo Émile Durkeim, de Fato Social. Este comportaria duas características essenciais: 1) o poder de coerção externa e, no caso de transgressão, a sanção imposta; em outras palavras, os indivíduos são impelidos a se adaptarem e; 2) a sua exterioridade ou independência em relação às manifestações individuais.
            A questão dos fatos sociais serem exteriores aos indivíduos, embora os afetem diretamente de maneira coercitiva – na visão durkheimiana – vislumbra uma primeira dicotomia, assinalada posteriormente por Bourdieu: por um lado, existem aqueles que criam as leis e se preocupam com seu cumprimento (dominadores); por outro, aqueles que acatam e as obedecem (dominados).
            Tendo em vista que, neste texto, a violência simbólica se volta para o caso da mulher numa sociedade onde impera – salvo exceções – a dominação masculina, outras dicotomias discriminatórias e preconceituosas, frutos de construções de crenças dominantes no processo de socialização, serão pinçadas: masculino/feminino, virtude/pecado, recato/desvio, fascínio/repulsa, felicidade/infelicidade etc. Dicotomias estas que podem ser observadas em condutas de intimidação, ameaças, manipulação, humilhação e isolamento.
            A radiofonia na década de 50 deu oportunidade a compositores e cantores para expressarem as suas felicidades e infelicidades, entre outras, tendo como “objeto” central, a mulher. O samba-canção “Meu vício é você” (1955), de Adelino Moreira da Castro, não fugiu à proeza; o mesmo fazia sucesso, em especial na voz do saudoso Nelson Gonçalves.
            A dominação masculina, ferrenhamente imbricada e, por outras, subliminar, tecem os versos da canção em questão, tendo o sexo (dominação de gênero) como definidor do sujeito. À visão submissa, paciente, prestativa, meiga e reprodutora da mulher, surge nas entrelinhas dos versos, a mulher: 1) Vadia: “Boneca vadia de manhas e artifícios”; 2) Pecadora: “Peca só por prazer, vive para pecar”; 3) Desviante: “Que vive perdida no mundo a rolar”; 4) Maldita: “Embora ele [o corpo] seja prenúncio do mal; 5) Prostituta: “Boneca noturna”; “Que sai pela noite e amanhece na rua”; 6) Insignificante: “Boneca de trapo/ Pedaço da vida...”; “Farrapo de gente...”; 7) Alienada: “... inconsciente/ Peca só por prazer...”; “E há muito não sabe o que é luz solar.”
            Outros estigmas podem ser extraídos do samba-canção e acrescentados à relação anterior. O indivíduo não nasce sabendo isso, ele aprende a pensar e agir conforme os ditames impostos pelo poder simbólico. A violência simbólica recai sobre o gênero feminino, no caso da música, a partir da dominação masculina. A representação social que o homem tem da mulher está ferrenhamente intrincado no seu hábitus. Neste, o homem pode ser desviante, pecador, vadio e, até maldito; muita das vezes – dependendo do contexto – sãos vistas como formas de asseverar a masculinidade.
            Por outro lado, em virtude do “vício” (lascívia, desejo) – o qual só o homem poderia ter – a mulher poderá ser aceita como mera “boneca de trapo” – embora seus erros, pecados e vícios – para uso e apaziguamento dos instintos mais baixos, como ilustra o senso comum: “fique pronta que hoje vou te usar”. Afinal, tão somente, para isso serviria.
            Isso é apenas um recorte exemplificador de violência simbólica contra a mulher, entranhada em versos, na década de 50, no Brasil. Portanto, vale ressaltar que todo fato social deverá ser contextualizado. Países e sociedades diferem quanto ao Capital Cultural, formas de propagação (escola, família, igreja, clubes etc.), bem como lutas, conquistas e recuos visando um mundo melhor.
            Nem toda boneca é de trapo, nem todo farrapo é gente. “Boneca de Trapo, farrapo de gente” poderá ser uma fase (caçulo) de preparação consciente para um voo maior, ladeado de liberdade e responsabilidades. 

 

 
 
Poema publicado na "Seleta de Contos de Autores Premiados"- Edição Especial - Janeiro de 2017