João Paulo Hergesel
Alumínio / SP

 

 

Champagne e Réveillon

 

           

O apito indicava que o navio estava saindo do porto. Abri os olhos e percebi que ainda estava na embarcação. Havia pegado no sono enquanto andarilhava pelo lugar em busca de comida e, sem querer, me infiltrei em um cruzeiro rumo à França.
Era véspera de ano-novo e as pessoas passariam o Réveillon em alto-mar. Decidi fazer um tour e passei entre muitas pernas desconhecidas. Só sosseguei quando encontrei alguém diferente.
Era bem menor que uma pessoa, andava sobre quatro patas e tinha pelo bege em todo o corpo. Além disso, tinhas alguns bigodes, mesmo sendo fêmea, e miava como uma gatinha mimada. Havia encontrado alguém da minha espécie.
Fiquei à espreita, só olhando e me encantando pela beleza dela. Escutei sua dona chamando:
— Champagne! Champagne!
Um nome francês que combinava com a cor do pelo e com o requinte da gatinha. Cheguei perto, mas, quando me viu, miou em desespero. Tentei me explicar, mesmo sem saber francês:
— Champagne... Calma! Amigo!
Fiz a carinha de dó que todo gato sabe fazer, e ela riu. Parou de miar e me disse, tropeçando nas palavras:
— Eu falar português. Pouco.
Justificou que havia estudado em uma escola de línguas felinas na França e sabia miar em francês, inglês, espanhol e um pouco em português, italiano e alemão. Mas que eu havia sido o primeiro gato lusófono que ela conhecia.
— É quem você? É mau?
— Sou apenas um gato caolho do rabo comprido e não faço mal a ninguém, a não ser às sardinhas que caço para me alimentar.
Ela ficou parada me olhando, e eu pensei que ela não havia entendido; mas logo fez uma cara de nojo e falou:
— Sardinha? Peixe pobre! Eu comer salmão.
Além de mimada, Champagne ainda era patricinha. Dei as costas, abaixei a cabeça e decidi que iria voltar para o piso inferior do navio. Mas ouvi um elogio vindo dela:
— Bonito olho você tem! Qual o nome de você?
Expliquei que eu era um gato sem sono, sem olho e sem nome. Ela fez biquinho, ou melhor, fez focinho e disse que, como era véspera de ano-novo, iria me chamar de Réveillon. Dei um sorriso felino, pois Champagne e Réveillon tinham tudo a ver.
Então a convidei para sair naquela noite.
— Para onde?
— Para todos os cantos do navio.
A primeira estrela surgiu no céu, e eu estava na proa do navio, onde marquei com Champagne de nos encontrarmos. Ela demorou um pouco, mas logo surgiu, com um colar de pérolas moldado exclusivamente para gatos e exalando o aroma de xampu francês.
— Vamos?
E assim resolvemos dar uma volta em todos os espaços do navio. Vimos um grupo de pessoas da Sociedade Protetora dos Animais. Iriam à França para protestar em frente a uma grife de casacos de pele.
Continuamos andando e demos de cara com um cachorro babão. Tinha baba em todo o chão ao redor dele. Passaríamos direto, se não fosse o fato de que o colar de Champagne resolveu se soltar e deslizou até as patas caninas.
— Opa! E agora, Réveillon?
— Eu pego para você, Champagne.
O cachorro, que estava calmo, começou a latir logo que me viu. Não consegui nem chegar perto do colar que senti o bafo dele perto de mim. Corri para o lado contrário, para que ele não fosse até Champagne e, quando percebi, ele já estava dormindo.
— Champagne! Champagne! Onde você está?
A gatinha havia sumido. Quase voltei para o grupo dos protetores dos animais e tentei relatar o ocorrido, mas ela apareceu, bem atrás de mim, num ato de surpresa. Trazia o colar na boca.
— Olhe! Peguei de volta. Está meio babado, mas está comigo.
Tive vontade de dizer para ela nunca mais me assustar daquele jeito, mas preferi perguntar se ela aceitava continuar o passeio. O estômago respondeu por ela, roncando.
— Desculpe. Não jantei hoje.
Estávamos bem próximos da cozinha do navio e, embora eu não tivesse dinheiro para lhe pagar um prato de salmão com caviar, eu tinha boa agilidade e força para derrubar a lata de lixo. Havia várias cabeças de peixe ali.
— Eca! Você come isso, Réveillon?
— Não é tão ruim como parece.
Champagne continuava com cara de quem ia vomitar, mas o estômago roncou mais uma vez. Ela lambeu o esqueleto de uma sardinha.
— Parece salmão sem tempero. É até bom.
Assim, comemos até que as barrigas ficassem satisfeitas. Ela esfregou a orelha direita em mim e agradeceu a noite:
Merci, mon petit.
Fogos de artifício surgiram no céu e se misturaram com as estrelas. Era meia-noite, era um novo ano, era uma nova vida. Tudo estava indo de vento em popa e de gato em proa. Ela deu uma última piscadela, correu até a janela de seu dormitório e pulou para dentro.
No dia seguinte, percorri todo o navio à busca de Champagne, mas não a encontrei. Decidi ir ao dormitório dela. A porta estava entreaberta e dei um jeitinho de entrar escondido.
No quarto, a dona chorava e havia um cara de branco examinando alguém na mesinha. Vi que era Champagne e que estava espumante. Da boca dela, saía muita baba, como acontecia com o cachorro que encontramos no dia anterior.
— Ela está com raiva — o veterinário disse.
A dona se perguntava como ela poderia ter contraído essa doença, já que não tinha contato com nenhum bicho malcuidado e...
— Veja! Tem um gato pulguento ali — ela berrou assim que me viu. — Foi ele que deixou minha Champagne doente.
Os protetores dos animais ouviram meus miados desesperados e reivindicaram pela minha vida. Os funcionários do navio prenderam-me numa jaula e disseram que me soltariam no próximo local em que o navio atracasse.
Jogaram-me numa ilha e rapidamente deram sinal de reembarque. De longe, consegui enxergar uma gatinha bege passar com uma espinha de peixe na boca. Parecia saudável e contente por ter descoberto um novo sabor.
Miei o mais alto que pude, e ela olhou para mim. Parou e pareceu pensar por alguns instantes. O navio se distanciava. Antes que ela desaparecesse totalmente da minha visão, consegui fazer leitura labial do que havia miado:
Je t’aime, mon petit!
E o “eu te amo”, eu sabia muito bem o que significava, fosse qual fosse a língua.

 

 

 

 
 
Poema publicado no livro "E agora, Bob?"- Edição Especial - Maio de 2017