Cerqueira dea Sousa

   
   

Rozelene Furtado de Lima
Teresópolis / RJ

 

Construir e ouvir estrelas

 

 
Ventos que trazem poeira, vírus, frio, tempestades trazem também saudades. Ah! Como sinto a falta dos meus avós e dos meus pais. Não é uma saudade triste ou chorosa. É uma saudade de tempos bons de sabedoria compartilhada. Em verdade, verdade nós tínhamos os costumes da época deles, correções violentas, exigências esdrúxulas e outras mais que não precisamos relembrar nem repetir. Período em que a mulher era literalmente somente um ser útil e imprescindível, sendo assim não era desvalorizada e sim era muito maltratada. Eu penso que os homens sentiam muito medo do poder, compreensão, inteligência e principalmente da qualidade da sabedora de assuntos gerais com soluções rápidas assertivas e obviamente do discernimento feminino.  

     A minha filha convidou uma amiga para vir em casa, passar o dia. Ambas se conheceram na Faculdade, nas pós-graduações, viagens, trabalharam no mesmo local, saiam juntas, iam a comemorações e etc. A amiga estava casada e a minha filha fazendo home-office.  

      - Mãe...por favor, arruma a casa, deixa tudo organizado. Tudo bem, eu faço isso sempre, porém naquele dia era para impressionar a amiga. 

      Minha vó vinha para casa da minha mãe, na bolsa grande dela tinha um montão de coisas, ela tirava tudo da bolsa até chinelos, toca de dormir, vidros com chás medicamentosos e no fundo, bem no fundinho da bolsa ela tinha linha e agulha de crochê. Ela sentava numa cadeira na varanda e conversando trabalhava a linha e agulha.  Parecia que as ferramentas dela estavam ligadas na eletricidade, ela não olhava para a execução do trabalho detalhado, os paninhos de crochê iam crescendo sempre redondos e ficavam artisticamente mimosos. Ela já tinha muito treino na técnica de fazer crochê, para mim a varinha mágica dela era aquela agulha que parecia que tinha boca. 

       Quase à hora da visita chegar, a minha filha fez um tour pela casa para confirmar se tudo estava a contento e gritou: - Mãe, por favor, tira esses paninhos de crochê eles dão uma ideia de velhice mofada! Pensei, é preciso razões convincentes para fazer e aceitar um pedido desses. 

      Se a beleza poética não é sentida em determinada situação é porque ela não existe no coração de quem vê, portanto só salta aos sentidos o que está impresso em nós e embebido em emoções.  

     Voltando ao respeito à memória afetiva da minha avó, não tirei os lindos centros de mesa artesanalmente feitos pela fada minha talentosa antepassada. Olhei demoradamente para aquelas criações artísticas que demonstram sentimentos, provocam emoções, ideia de encantos enfeitando a alma trazendo reflexos de amor. É pura composição poética sem palavras escritas, entretanto pode-se ler e ouvir magníficos poemas escritos com a varinha mágica.  Vovó era grande poeta lançando obras desenhadas em mandalas com coloridas rimas, tecidas no coração externalizando construção para a imortalidade.  

      A moça amiga da minha filha, muito gentil e simpática, passeou pala casa, almoçou, conversou e na hora que estava saindo olhou para mim e perguntou:- Você sabe fazer crochê? Meu sonho acalentado é aprender a crochetar e construir a ponte de inspiração alquímica entre as mãos e o cérebro. Acho tão lindos esses delicados trabalhos que dão a casa um ar romântico de paz e aconchego. Se você quiser me ensinar eu tenho duas horas por semana em dias alternados.

     - Sim, claro que sim, será um enorme prazer ensinar a você e homenagear minha avó. Respondi. 

     O passado deixa de ser passado quando o momento vivido vem à tona e passa fazer parte do presente. Seja numa lembrança, na leitura de um texto ou na visão de uma obra de arte onde conseguimos ouvir os sentimentos de quem realizou o trabalho.   

      Tive um professor de matemática que quando um aluno não conseguia entender o assunto da aula ele falava: “o seu entendimento foi para o país do Nada e é sempre possível recuperá-lo”.  

      É simples enxergar os sulcos que as mãos constroem onde os sentimentos abstratos semeiam a futura colheita. A arte de fazer crochê é um exercício que aglomera a aplicação da geometria, matemática, música, botânica, astronomia entre outros e está presente na decoração, cama, mesa e no vestuário. Reúne cálculos matemáticos e desenhos feitos por mulheres que compõem receitas e compartilham.  A influência da marca das mulheres nas ciências só foi reconhecida muito tempo mais tarde, embora o crochê venha sendo confeccionado desde a pré-história. Hoje é considerado um trabalho também terapêutico aconselhável para toda família executar. 

      Não é refúgio é treino intelectual é tarefa de equilíbrio e perfeição. É conquista, dedicação, paciência, criação que permite construir e ouvir estrelas. É poesia!!!




Contos "Retratos do cotidiano"
Novembro de 2022

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