Marina Moreno Leite Gentile
São Paulo / SP

 

 

A primeira prancha de surf

                

 


     

Fazia um dia lindo.  Diversas pessoas seguiam para a praia,  mas  os dois  irmãos   Toninho e  Lucas  não podiam,   pois a mãe deles trabalharia naquele feriado.  Ela era cozinheira.  Os dois irmãos então brincariam de pião em frente a casa, era a brincadeira da moda.   A rua não era asfaltada, mas  o pião deslizava na terra seca batida,  levantava  pequena poeira  e  rodava por um bom tempo.  Enquanto tocavam o pião,  também conversavam animadamente.     Toninho tinha 13 anos e Lucas  12.  
-  Oi  Lucas, você sabia que nosso avô surfava em um local do Rio de Janeiro, no Arpoador ?
O irmão  respondeu que não sabia.
-  E você sabia que a nossa avó  Dinorá conheceu ele na praia?   Ela me contou que o vovô  surfava muito bem,  era bronzeado.   Muitas garotas ficavam olhando para ele,  mas ele só prestava atenção na vovó.    Ela era tímida,  percebia  mas fingia que não via.   Até que um dia o vovô  ofereceu  um suco para ela,  somente para puxar uma conversa. Ela aceitou,  e dali em diante se tornaram amigos.   Não demorou muito, pediu ela em namoro.
-  Como assim pediu em namoro?  Não entendi.
-  Antigamente o garoto tinha que pedir  permissão para namorar, para o pai da garota.  Não era como hoje não! Foi a vovó que me contou isto. Isto faz muito tempo. 
- Lucas,  eu queria que o vovô pudesse nos ensinar a surfar, mas agora ele não consegue.   Que tal pedir para a mamãe nos colocar na escolinha de surf,  daquele brother da comunidade?  O que você acha?  O nosso amigo João conseguiu entrar sem pagar.  É só dizer que não pode. Boa ideia, vamos tentar, respondeu o irmão.   
Ao retornarem da escola, depois de almoçar e descansar, logo faziam os deveres escolares.   Quando a mãe chegava,  normalmente eles estavam sentados defronte a TV.   A mãe perguntava se estava tudo bem, se já tinham concluído as tarefas,  etc.  Naquela noite os meninos estavam diferentes, ela percebera que desejavam  algo.  Rapidinho o Toninho criou coragem e disse para ela:
- Mãe,  nós temos uns amigos que estão  em uma escolinha de surf.  É o filho do Sr. Satiro que está dando aulas.   A senhora  nos deixaria  aprender  a surfar?   Sabe mãe,  nos gostaríamos  de surfar igual ao vovô.  Gostamos  tanto dele.     Se ele não gostasse de surfar,  acho que não teria conhecido a vovó!  Ela então respondeu:
-  Prometo que pensarei  meus filhos.   É que eu fico com medo.   E se vocês forem para o fundo  e acontecer algo?    
-  Mas mamãe,  nós já sabemos nadar!
- Filhos, nadar não é o suficiente. O mar tem muitos segredos.    Além disto,  não posso comprar uma prancha para vocês, pelo menos por enquanto.
Toninho era insistente, continuava com seus argumentos:
-  Ah mãe,  o professor nos ensinará muitas coisas.  Tenho certeza disto.  Tem um  monte de meninos da nossa rua que estão lá.   Blá, blá, blá...   Ele empresta uma prancha para nós.
De tanta insistência,   a mãe disse que iria pensar.   E para resolver logo este assunto, naquela semana, em uma das folgas,  ela foi até a escolinha de surf,   falar com o professor.  Ela explicou que não podia pagar, nem comprar as pranchas.  O professor já conhecia eles,  portanto rapidamente aceitou-os como alunos.   Quanto às pranchas, as emprestaria também.
A  data e horário  para iniciarem foram definidos.    Lá aprenderam  muitas coisas,  prestavam atenção em cada palavra do professor.   Recebiam  muitos ensinamentos sobre o mar  e seus  segredos.    Uma das instruções  foi  a necessidade de aquecimento,  antes de adentrar na água.
A mãe sempre  lembrava-os  que somente frequentariam a escola de surf  se mantivessem as  boas notas.   Eram bons alunos e deveriam se manter assim.  No final do ano letivo os  dois passaram  direto.   
Chegara o final de ano,  as aulas da escola de surf  foram interrompidas por um tempo.   Além de não ter escola,  também não podiam surfar, então só restava ver tv e brincar na rua.    Foi neste período que tiveram uma ideia.  Escreveriam uma carta para o papai Noel,   para tentar ganhar uma prancha.   A ideia era boa, então a carta foi escrita mais ou menos assim:
   Papai Noel ...
      Este ano eu e meu irmão Lucas tivemos notas boas,  fizemos tudo que a mãe pediu.  Sabemos que tudo que ela fala é para o nosso bem.  Papai Noel, eu lhe peço uma prancha para mim, outra para meu irmão.  Se não puder nos dar uma nova, pode ser   usada.   Se puder dar pelo menos uma prancha, a  gente faz assim:  primeiro eu surfo,  depois ele. Ou o contrário! Nós fazemos tudo junto mesmo.  Um espera o outro.  Obrigado papai Noel. A carta  foi  dobrada e colocada debaixo da árvore de natal.
Como já estavam de férias, o tempo passava mais devagar  e  os dois estavam  ansiosos para chegar o natal. Para variar, na noite de natal a mãe deles foi trabalhar e chegou bem tarde.  Vovô  e vovó ficaram com os garotos.  A mesa estava enfeitada,  bonita,  mas debaixo da árvore não havia nada do tamanho de uma prancha.  Os dois irmãos ficaram preocupados,  mas ainda tinham esperança.
Quando a mãe finalmente chegou, ninguém percebeu,  pois entrara pelos fundos.    Ela adentrou  na sala com uns pacotes nas mãos,  e com uma bolsa  contendo  um monte de comidas gostosas.  Às pressas, colocaram tudo sobre a mesa enfeitada.     Exalava um cheiro delicioso.    A mãe tinha o aspecto  de cansada,   mas tentava demonstrar o contrário. Então sentaram à mesa,    oraram e agradeceram aquela oportunidade de estarem unidos.  Toninho e Lucas estavam meio calados,  tinham a certeza que o papai Noel não pudera  entregar  os seus pedidos.   O semblante demonstrava a decepção.  Debaixo da árvore tinha apenas pacotes de tamanho médio  e  duas caixas iguais.  Pela dedução, as caixas  eram para eles.   Uma delas era  azul,  a outra amarela.  Tudo indicava que ganhariam tênis.
No momento que a vovó mandou  irem até a árvore,  deram uma risadinha meio sem graça.
Então o vovô falou para o  neto primogênito:
-  Toninho,  você quer   o     presente azul   ou  o amarelo?
-   Não sei vovô.   Acho que quero o azul.
Então sobrará a caixa amarela para o Lucas.  Ok?
-  Sim vovô.
Os dois foram  até a árvore.  Cada um pegou a sua caixa.  Toninho sentiu que a caixa estava bem leve, e  quando a abriu  encontrou um bilhete  bem dobradinho.    O Lucas também recebeu o mesmo bilhete, onde tinha a seguinte  msn:  O papai Noel deixou um presente lá no quarto de vocês, não deu tempo para colocar na sala.   Vá até lá!  Eles foram correndo,  e quando chegaram no quarto encontraram o inesquecível presente. Oh, felicidade! Papai Noel  foi generoso.
Isso aconteceu há muitos anos e só depois de muito tempo a mãe deles contou que Papai Noel  comprara  as pranchas em muitas parcelas,  que foi um sufoco pagar.  O mundo girou diversas vezes  e  agora as pranchas são mais sofisticadas, mais leves, etc. , mas aquelas foram muito especiais.
Atualmente o surf tem mais adeptos, é mais valorizado,  mas já houve tempos de muito preconceito.  Alguns surfistas eram acusados de coisas que jamais fizeram.   Aliás,  alguns brasileiros talentosos e persistentes se tornaram ídolos, colocaram o Brasil em destaque neste esporte.   Parabéns para eles.  Quem gosta de surf sabe bem disto:  A primeira prancha a gente nunca esquece!


     

 

 

 

 
 
Publicado no Livro "Vox populi, vox Dei" - Edição 2019 - Agosto de 2019