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Alice da Silva Rodrigues
Nova Iguaçu / RJ

 

Barreira corporal

 

Há oito anos, Betina aspirava chegar à velhice tendo realizado todos os seus objetivos. Queria ser promovida no emprego, começar seu doutorado, viajar pelo mundo, encontrar sua alma gêmea, se casar, ter quatro filhos, enfim, queria continuar tendo uma vida. No entanto, aos trinta e dois anos, ela não podia sequer ir à esquina. Aprisionada, havia perdido completamente sua autonomia. Era sempre acompanhada em tudo que fazia desde se alimentar até tomar banho, esta que se transformara em uma atividade coletiva e esporádica. Seus pais, já idosos, só podiam visitá-la uma vez na semana e por, no máximo, quarenta minutos. Durante os primeiros anos, eles nem mesmo podiam tocar na filha deles, tendo que se contentar com uma rápida espiada por um vidro que os separavam. 
            Ao longo dos anos, Betina perdera as noções de existência e aparência de aspectos corriqueiros a qualquer outro indivíduo. Para ela, o céu havia se compactado a uma janela de um metro e meio quadrado, e automóveis se tornaram barulhos emanados durante os horários de rush. Além de não ter privacidade, Betina também foi privada de seu cabelo. Seus fios foram raspados assim que a ficha de cadastramento àquele confinamento foi preenchida. Em um dado instante, sua revolta veio à tona, de forma que só pôde ser controlada por meio de verdadeiras mutilações físicas e emocionais, porém, ambas ineficazes. Betina já era considerada um caso perdido, uma doença incurável. Gritos, lágrimas, dor, sangue, lâminas afiadas e agulhas foram seus mais fiéis companheiros naquela jornada. Sua vida havia mudado do vinho para a água, do rosbife para a sopa, da roupa de grife para o uniforme listrado de azul. Aquela sobrevida encarcerada, cuja única medicação era a liberdade, não poderia mais ser protelada.    
            Depois de sofridos dois mil oitocentos e oitenta e dois dias, o tão aguardado momento havia chegado: o dia da libertação. Ao abrir seus olhos pela manhã, Betina apenas tentou imaginar como seria não ter mais seu sono embalado pelo ecoar dos passos dos seguranças de um lado para o outro ao longo daqueles corredores compridos e gélidos. Depois de tentar fugir duas vezes, aqueles homens eram a personificação de cercas para o seu subconsciente. A menos de uma hora, os procedimentos seriam iniciados e a padecente se perguntava se seus pais haviam desistido dela, assim como sua vida já havia feito.     
            Horas depois, Dona Margarida e seu Carlos batem à porta de um dos quartos da enfermaria feminina, onde a filha deles vestia roupas adequadas para iniciar o fim de seu martírio. Ao ver seus pais, Betina chorou compulsivamente enquanto corria para abraçá-los. Os três permaneceram entrelaçados por tempo suficiente para que a futura liberta perdesse suas forças e caísse de joelhos. Prontamente, duas enfermeiras a colocaram em uma cama. Recuperada da fraqueza e escoltada à direita por seus pais, Betina não poderia estar mais satisfeita por tê-los junto a si naquela ocasião, e só queria que eles soubessem disso:    
―Muito obrigada, mãe! Muito obrigada, pai! Muito obrigada por não terem me abandonado nem mesmo no momento do abandono.        
Antes que seus pais pudessem dizer algo, uma das enfermeiras que estavam no quarto caminha em direção a Betina e pergunta:        
― Querida, em qual braço você gostaria de receber a injeção?      
― Bem, como sabemos, o antônimo de vida é morte e vice-versa. Baseado nisso, como minha vida está toda à minha direita, escolho o braço esquerdo, por favor. ― responde Betina sem desviar o olhar sobre seus pais.    
            Após o procedimento e de mãos dadas com sua filha, Dona Margarida, com os olhos vermelhos e a voz embargada, começa a ler um papel que tirou de sua bolsa enquanto Seu Carlos acaricia os cabelos de Betina:   

 “[...] Todos esses incontáveis episódios cirúrgicos só serviram para nos ferir de todas as maneiras possíveis. Portanto, não adicionar sofrimento aos oito anos que você ficou aprisionada nesse hospital soa agradável de certa forma para todos nós.           
            Fomos conduzidos a um beco sem saída. Havia duas opções: permanecer ali e morrer ou pular o muro e termos a chance de sobreviver. Contudo, tal chance jamais...

           
            Sem terminar de ler, Dona Margarida apenas dobra o papel e o guarda no bolso novamente. Intrigada, Betina pergunta pela continuação:   
― Jamais...? A senhora não vai concluir?    
Depois de algum tempo, ao ver uma única linha no monitor cardíaco, a senhora responde com pesar.    
― Deixo essa função à sua eutanásia.          

 
 
Poema publicado no livro "Os mais belos Contos de Amor" - Outubro de 2016