Romilton
Batista de Oliveira
Itabuna / BA
Oiciruam
Ninguém nunca lhe quis estender as mãos.
Sempre viveu sozinho, metido em suas clandestinas e livres opiniões.
Logo cedo aprendeu com a vida que as coisas só acontecem
na hora certa. Seus pais e seus dois pequeninos irmãos
morreram quando o barraco onde moravam pegou fogo. Ele sobreviveu
ao incêndio, mas teve que conhecer bem cedo, com apenas
a idade de doze anos o sol nascer com a força da solidão
e a noite adentra-se com a dor da separação. Naquele
momento de extrema tristeza ninguém apareceu para lhe estender
as mãos. Saiu com a roupa no corpo e sem nada nas mãos.
Apenas sua vontade de viver e caminhar pela estrada da vida.
Aprendeu de tudo na vida, menos a matar e a roubar, porque havia
dentro de si uma voz vinda não sei de onde que lhe ensinava
a não pegar o que não lhe pertencesse e a não
tirar a vida de seu semelhante. Aprendeu a ver a vida com um outro
olhar, com um olhar multicultural. Sentia-se livre sem contas
a pagar, sem moradia fixa para dormir, sem prestar contas a ninguém.
Era um jovem que pertencia ao mundo, mas que não tinha
os mesmos valores culturais dos meninos que com ela dialogavam.
Todos carregavam dentro de si uma certa dor da vida, um trauma
que gritava em seus corações e o faziam ser empedernidos
e cruéis. Com ele, tudo era diferente. Seu coração
só guardava a potência do ser.
Seu nome era Oiciruam. Oiciruam era o nome dado por seu pai. Sua
mãe sempre lhe dizia que esse nome lhe traria muita sorte
porque foi o nome de seu avô, um guerreiro índio
que morreu na guerra lutando contra a invasão de suas terras
pelos brancos. Sua mãe era de pele negra e de alma híbrida.
Tinha cabelos maltratados e era dona de um corpo que guardava
as marcas da violência que ela lutou para não ser
contaminada ou violentada sexualmente. Um determinado homem tentou
estuprá-la, mas Maria tinha uma força brutal que
a fez se defender dos braços do leão selvagem, e
este leão fugiu como o diabo foge da cruz. Era uma negra
muito cobiçada pela favela, pois tinha um olhar profundo
que mexia nos homens que passavam por ela, mas ao mesmo tempo
os homens tinham medo de se aproximar dela porque sabiam que ela
tinha fama de mulher fiel ao seu esposo José, além
de carregar consigo uma força capaz de lutar com três
homens e derrubá-los de uma só vez. Maria José
era enfim uma mulher diferente das demais porque não cria
na religião de seus ancestrais e não se curvava
diante de imagens para adorá-las. Ela preferia conversar
com toda a sua simplicidade diretamente com o dono do mundo. Sentia-se
mais segura falando diretamente com o Criador. Para ela só
existe uma só voz que com muita sabedoria, glória
e poder socorre e ouve todos os seus filhos na Terra. Ela preferiu
chamá-lo de “Todo-Poderoso”. Já seu
esposo era um homem silencioso, e acabava fazendo todas as vontades
de sua companheira. Ele era budista, mas logo se converteu à
livre religião de sua amada.
Oiciruam sempre lembrava das histórias que sua mãe
lhe contava. Passou muita fome e muita necessidade. Foi homem
de muitas doenças e muitas dores, mas, acima de tudo, era
persistente e extrovertido. Fazia amigos por todos os lugares
por onde passava. Jamais quis ser confundido com um mendigo, pois
sempre se mantinha asseado e limpinho. Até que um dia teve
um problema de saúde e teve que ser internado. No hospital
conheceu um jovem de nome Notlimor. Tornaram-se amigos fervorosos.
Notlitor tinha uma grande família, mas se sentia só.
E viu neste novo amigo, um irmão que Deus estava lhe presenteando.
Constantemente eles se viam. Dava gosto ver a amizade desses dois
jovens unidos por um laço tão forte e tão
misteriosamente divinal.
Parecia que havia algo mais naquela relação tão
feita de tecidos não-humanos. Uma relação
que no mundo jamais se viu porque não se faz mais seres
como antigamente. Os homens são às vezes contaminados
por seus pensamentos e decretam discursos tão cheios de
prepotência e vaidade que acabam quebrando os laços
de uma verdadeira amizade. O que impedem os homens enxergarem
com os olhos dos primeiros habitantes do mundo (Adão e
Eva) é a escravidão que adentra a alma de seu mundo
interior. Os homens foram criados para “ser”, e não
para odiarem uns aos outros. A felicidade está aberta para
todos aqueles que em simplicidade e harmonia, conseguem ver no
outro o seu reflexo de indivíduo incompleto, de indivíduo
que precisa ultrapassar os horizontes do “ter” que
o mundo tanto valoriza. As máscaras impedem as pessoas
de serem elas mesmas. As pessoas se escondem em seus pequenos
quintais e se apoderam de falsos discursos para legalizar suas
fracas e inconsistentes opiniões. Só há uma
forma do homem se aproximar verdadeiramente de Deus: sendo ele
mesmo, puro e não-contaminado pela avareza e pelo capitalismo
deste mundo cheio de signos em explosão, signos em liquidação.
Oiciruam e Notlimor foram aproximados pelo destino, e separados
também por ele, pois estava escrito na força da
potência da vida que não se apaga que o tempo devolveria
novamente a terra o que foi interrompido por ele mesmo. O tempo,
o destino, o passado, as feridas, as marcas, o espaço,
as ideias, os sentimentos, tudo passa e deixa rastro e vestígio
na memória de um tempo que jamais voltará a sê-lo
novamente.
Passado alguns meses, Oiciruam soube que seu grande amigo havia
morrido. Ficou muito triste. Foi ao cemitério lhe prestar
homenagem, e diante do cadáver a ser enterrado, prometeu-lhe
um dia escrever um livro cheio de histórias, e que ele
seria lembrado e participaria de sua narrativa como personagem
principal, pois foi um amigo muito especial. Acreditava Oiciruam
que jamais terá um amigo como Notlimor. E creio que Notlimor,
onde quer que esteja ele, também guarda dentro de si este
mesmo pensamento. Não se trata de uma relação
de amor ou desamor, trata-se de uma relação feita
por um outro tecido descritivo, por uma potência de vida
que uniu dois potentes indivíduos a seguir o seu destino
de vitoriosos guerreiros que vieram ao mundo para fazer diferença.
Vieram ao mundo, mas não pertencem a ele, porque são
seres iluminados por uma outra dimensão, por um outro ingrediente
que Deus separou quando fez os seus primeiros indivíduos.
Assim, a história que não possui fim como nenhuma
outra história, porque tudo está em construção:
a vida, a alma, o ser, o tempo, o espaço, os sentimentos,
Deus e a sua grande labuta e insistência em recuperar a
humanidade que a cada dia, se distancia de seus lídimos
valores, deixando ser invadida por um furacão de líquidos
pensamentos, deixando ser globalizada por uma falsa ideia de transformação
e inovação. Tudo se repete. Tudo gira em torno da
repetição. Ninguém escapa dela. E esta história
também está neste exato momento se repetindo em
algum lugar deste grande mundo, cheio de tantos outros mundos
imagináveis.
(Homenagem ao amigo Maurício, filho de Maria José,
um amigo mais que irmão, inesquecível mano que a
vida me fez compartilhar)
|
|
|
|
|