Adriano de Jesus Santos
Guarapari / ES
Decadente locadora
Corredores vazios e prateleiras cheias das mais
variadas histórias. Oscares reunidos aos montes e outros
tantos filmes que nem chegaram perto do glamour daquela noite
onde as estrelas cinematográficas passam por aquele tapete
vermelho, sonhando com a estatueta e o máximo de reconhecimento
profissional.
Mal deu tempo converter todos os vídeos VHS em DVD e o
único funcionário sobrevivente adquiriu o hábito
de contar seus passos por aquele labirinto de histórias
algumas tão dramáticas quanto o rumo que sua vida
estava tomando. Ouvira comentários de que as portas do
estabelecimento seriam fechadas por tempo indeterminado. Começava
a pensar em um formato para seu currículo e em todos os
cursos que deveria ter feito ao longo daqueles dez anos em que
esteve ali. Iludira-se pela estabilidade no emprego e incapacidade
de perceber as mudanças que rapidamente se aproximava.
O futuro previsto pelos futuristas havia chegado.
Que saudades do dia em que o telefone não parava de tocar,
clientes chegavam a todo instante atrás de lançamentos
e locando filmes para todo o fim de semana e feriadões
que se tornavam tão lucrativos. Marilyn tinha muito trabalho
ao gerenciar a loja e organizar as atividades de todos os seus
oito funcionários. Quantas vezes chegara em casa estressada
e ia logo tomar um analgésico para sua dor de cabeça.
Até do motivo daquelas dores de cabeça ela sentia
saudades. Após os dias de bonança, chegou ao ponto
de passar boa parte do tempo jogando paciência no computador
comprado na época de euforia. Às vezes, levantava-se
da cadeira e ia até a porta olhar o movimento da rua. Em
pleno feriadão e só conseguira negociar o aluguel
de sete filmes, não dava nem para pagar a conta de luz.
Às vezes, movida pela curiosidade, dava uns passos a mais
até poder olhar o interior das duas lan houses localizadas
naquele mesmo quarteirão. Do outro lado da rua, via o bom
movimento de consumidores nas cinco bancas de filmes piradas.
“Maldita hora que inventaram essa tal internet” pensava.
Dois de seus ex-funcionários foram demitidos depois de
darem um passeio por aquelas bancas e saírem com alguns
DVDs. Foi a gota d’água, ela saiu quase correndo
atrás dos dois, alcançando-os um quarteirão
depois e gritou por entre os dentes para que toda a rua não
ouvisse: -Ingratos, traidores vocês estão contribuindo
para a ruína da minha empresa. Quero ter uma conversinha
séria com vocês amanhã.
Arrependida, pediu desculpas no dia seguinte, mas diante da necessidade
de continuar cortando gastos os dois foram os próximos
na lista de desligamentos. Só restavam dois. O penúltimo
saiu da empresa duas semanas depois ao montar seu próprio
negócio. A sua empresa se localizava em qualquer rua, não
era registrada em nenhum órgão regulamentador e
sua matéria prima era DVDs virgens e alguns programas de
downloads em um computador potente. O lucro estava garantido.
Por sorte, Marilyn não dependia daquele negócio
para sobreviver. Seu marido era dono de um tradicional posto de
gasolina e aquela locadora era apenas um dos vários imóveis
que herdara de seu pai. Aliás, era pelo seu pai que ela
continuou ali. Adorava cinema, só não se tornou
ator por falta de habilidade e ser diretor sempre pareceu depender
de contatos específicos que ele nunca teve. Mas ele lia
muito e assistia a vários filmes. Tornou-se um bom crítico
de cinema. Concedia entrevistas e escrevia em alguns jornais quando
se aproximava a célebre noite de entrega do Oscar. Em outras
épocas do ano todo seu conhecimento era apenas para satisfazer
suas necessidades individuais. Seu conhecimento não interessava
a mais ninguém.
- Papai, perdoe-me pelo meu fracasso. Disse olhando para o céu
no exato instante em que seu último funcionário
baixava aquela porta às dez horas da manhã depois
de um comunicado de encerramento das atividades.
A tristeza invadiu o coração do rapaz encarregado
do último ato naquela manhã sombria. Estivera ali
praticamente desde o início, viu a empolgação
do Seu Chagas durante o ano em que a locadora atingiu suas metas
todos os meses. Nessa mesma época a herdeira do patrimônio
nascera e ele não pensou duas vezes em dar a ela o mesmo
nome da atriz que lhe arrancava suspiros sempre quando a via na
telinha.
Não era possível saber o que ele pensaria de tão
trágico desfecho. Perito na arte administrativa, sabia
como ninguém se antever às mudanças, fazer
adaptações e jogar as más surpresas para
bem longe. Homem mais precavido não havia.
Depois de alguns dias, Marilyn estava dando graças a Deus
pela falta de trabalho. Mantinha seu alto padrão de vida
com os aluguéis dos imovéis. Contratou um administrador
e passou a postar fotos no facebook das muitas viagens que passara
a fazer ao longo do ano. Duas das fotos mais comentadas foram
a tirada nas pirâmides de Gizé e aquela que mostra
seu sorriso escancaroso de dentro de uma das torres da Grande
Muralha. Aos poucos, descobria o mundo que se acostumara a ver
pela TV.
Dois meses depois do fechamento, o estabelecimento esteve à
disposição de quem pudesse possuí-lo. Local
valorizado, imóvel vendido. Concluída a reforma,
inaugurou-se a loja de utilidades para o lar “tudo o que
você precisa”. Onde havia filmes passou a existir
plásticos nos mais variados formatos e cores, produtos
em alumínios e ferramentas. Sucesso de público e
vendas.
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