João
Francisco Lins Maciel Borges
Belém / PA
Verdadeiro amor
A tarde caía em Mançué. Os
brilhos tênues dos últimos raios do sol teimavam
em alumiar a hospitaleira cidadezinha encravada no coração
da Amazônia. O sino da igreja badalava anunciando a hora
do ângelus.
Sentada em um dos bancos da pracinha da igreja, uma morena cor
de jambo, cabelos negros soltos ao vento, olhos verdes amendoados,
corpo delgado e harmônico, uma beleza invulgar no esplendor
de sua juventude, ouvia atentamente a sinfonia da passarada, quando
alguém a cumprimentou educadamente.
- Olá, deve ser prazeroso ficar ouvindo o canto dos pássaros
em revoada nesta praça tão aconchegante!
- Sim, muito. Eu venho aqui sempre à tardinha.
- Com tanta beleza natural aqui, eu também jamais perderia
este espetáculo da natureza.
- Outros já fizeram este comentário. Venho para
ouvir o canto dos pássaros e o sino da igreja bater às
seis horas da tarde. O resto fica só na minha imaginação.
Aos cinco anos, fiquei cega. Hoje, tenho dezoito e já me
acostumei à escuridão. Enxergo o mundo à
minha maneira.
- Que pena! Nem parece. Seus olhos, além de lindos, são
perfeitos.
- Como é seu nome?
- Meu nome é Maria da Consolação, mas só
me chamam de Consolação.
- E o seu?
- Tiago. Estou aqui pela primeira vez. Vim comprar açaí
para a indústria de sorvete que possuo na capital.
- Vai gostar da cidade e do açaí.
- Posso lhe levar a sua casa?
- Eu sei ir sozinha, tateando com minha bengala. Mas, se quiser
me acompanhar, será um prazer!
Consolação apresentou Tiago a sua mãe que
o convidou a entrar e tomar um cafezinho recém-passado.
A viúva Aurora, mãe de Consolação,
explicou que sua filha entrou num processo paulatino de perda
da visão quando tinha pouco mais de quatro anos. O médico
aconselhou que procurasse um especialista fora de Mançué.
Como não tinha posse, apenas usou um colírio como
paliativo. Mas, aos cinco anos de idade, a visão de sua
filha desapareceu por completo.
Tiago apaixonou-se perdidamente pela jovem, ainda que quinze anos
mais velho. Consolação aceitou o pedido de namoro.
Era a chance que ela tinha para esquecer o namoro com Diego, um
ex-vizinho que se mudou da cidade.
- Ainda bem, minha filha, que encontrou este rapaz. Diego era
um moleque e maltratava muito você, aproveitando-se de seu
amor por ele e por ser cega.
- Verdade, mamãe. Vou amar Tiago e tentar esquecer Diego.
Como é o Tiago? É bonito, elegante?
- Não vou induzir você a nada. Irá conhecê-lo
através do tato e usará sua imaginação.
- Está bem, mamãe!
Namoraram dez meses, ficaram noivos e marcaram casamento para
o próximo ano.
Nesse ínterim, Tiago levou a noiva à consulta de
um oftalmologista na capital. O médico diagnosticou uma
doença degenerativa da córnea. Um transplante seria
a única possibilidade de Consolação voltar
a enxergar.
Tiago vibrou de alegria. De pronto, prometeu dar uma de suas córneas
para a amada. Ambos ficariam com visão em apenas um olho.
Assim foi dito, assim foi feito.
- Você retornará à Mançué enxergando.
– exultava Tiago.
- Oh, meu amor! Não vejo a hora de voltar a enxergar. Quero
ver você diante de mim ao vivo e a cores. – brincou
Consolação.
Enquanto os noivos estavam ausentes, Diego apareceu em Mançué
e foi à casa de Consolação saber notícias
dela. Desconversando, dona Aurora disse que agora ela residia
na capital com uma tia. Não queria que Diego se encontrasse
mais com sua filha.
Ao final do transplante, Consolação deixou a clínica,
retornando à Mançué. Após uma semana,
a visão da córnea transplantada seria submetida
à claridade. O mesmo procedimento fazia Tiago na capital.
No final da tarde, Consolação olhava na janela,
quando um rapaz parou na sua frente e disse “alô,
querida”. Foi reconhecido pela voz.
- É você, Diego? Fui operada do olho e já
estou vendo.
- Sim, sou eu. Agora pode me ver. Sou bonito, meu amor?
- Puxa, você é muito lindo! Mas agora tenho um novo
amor. É Tiago, com quem vou me casar.
- Consolação, se quiser voltar para mim, saiba que
ainda sou apaixonado por você. – disse Diego, que,
em seguida, surpreendeu a ex-namorada com um beijo na boca que
a deixou atônita.
Tiago retorna a Mançué. Consolação,
enfim, conheceu o noivo pela córnea doada por ele. Entre
um abraço apertado, beijaram-se.
Conversando com sua mãe, Consolação comentou
sua decepção por Tiago ser desengonçado e
desprovido de beleza, ao contrário de Diego que era belo,
elegante, atlético e mais jovem. Aurora chorou só
em pensar na recaída da filha pelo ex-namorado.
Tiago viajou para providenciar a transferência de sua indústria
para Mançué.
Consolação aproveitou a ausência do noivo
para se encontrar às escondidas com Diego.
Retornando repentinamente, Tiago, ao invés de ir direto
à casa de Consolação, resolveu passar na
pracinha. Quão não foi seu espanto ao ver a noiva
querida aos beijos e abraços com Diego. Sem se deixar notar
pelo casal, Tiago desapareceu de Mançué.
Numa certa tarde, ajudada por um vizinho, Consolação
chega a casa gritando de dor. Em consequência de uma discussão
com Diego, recebeu um murro justamente no olho que sofreu o transplante
de córnea. Queixou-se que estava enxergando somente sombras.
O médico disse que houve uma dilaceração
do nervo ótico e a cegueira agora era irreversível.
O tempo passou. Fim de tarde em Mançué. Sentada
no banco da pracinha, Consolação ouvia o gorjeio
dos pássaros, quando alguém a cumprimentou educadamente.
- Meu Deus, é você Tiago! Sua voz é inconfundível.
- Consolação, voltei. Eu a amo mais do que tudo
nesta vida!
- Tiago, me perdoe! Também amo você. Estou cega novamente,
mas não me importa. Quero seu amor mais do que a luz dos
meus olhos. Pela visão, se vê a matéria. Pelo
amor, se vê a alma.
...
“A pior cegueira é a mental, que faz que com que
não reconheçamos o que temos à frente.”
(José Saramago)
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