Maria Rita de Miranda
São Sebastião do
Paraíso / MG
Prometi, porém...
Hoje os dias são mais tranqüilos para Lúcia.
Embalada por seus quase sessenta anos de idade, desfruta a vida
fazendo algumas viagens, compartilhando sua existência com
amigas, filhos e netos. Vive cada momento dando valor às
pequenas coisas e muitas vezes recordando seu passado que teima
em vir à tona, transformando seu olhar vivaz em nuvens
melancólicas e remexendo fatos que, até hoje, ela
não decidiu se foram felizes ou não.
A moça de pequena estatura casou-se muito cedo. O casamento
foi para ela como que deixar as amarras da família um tanto
quanto opressora, como tantas outras de quarenta anos atrás.
A saída da casa paterna, onde até os sonhos eram
contidos, para a convivência com o rapaz que se tornara
seu marido, lhe trouxe um pouco de paz e liberdade.
Os dias eram mais promissores para Lúcia que não
precisava conviver com o olhar sempre acusador do pai. Nem se
isolar no trabalho doméstico e do campo, indo à
noite para a cama cansada da labuta, mas ciente que era só
nesta hora que podia pensar livremente a ponto de perder o sono
matutando uma vida melhor sem, no entanto, ter coragem de mover
um único músculo para alcançá-la.
Igor surgiu em sua vida como por encanto. Era dia de vir à
cidade fazer compras. Na praça central, debaixo de um sol
quente e tomando um sorvete que teimava em se derreter, ela o
avistou. Gostou do que viu e sentiu que seu olhar era retribuído.
Num ato ousado para a época ele foi se aproximando, enquanto
ela, assustada, aceitava o galanteio. Conversaram um pouco. Ela
disse que morava na zona rural e ele lhe falou que estava sempre
pelo centro da cidade, pois era corretor de imóveis. Isto
bastou. Cada vez que vinha à cidade eles se encontravam
surgindo um relacionamento amoroso que a levou ao casamento.
Construiu um lar onde a compreensão, o amor, a cumplicidade
faziam parte da rotina. Foi abençoada com um casal de filhos
e pode compreender um pouco a atitude de seus pais no que se referia
às preocupações que os filhos dão.
Estes ainda eram crianças, quando a notícia da doença
do marido a pega desprevenida. Jamais pensara que tal fato pudesse
acontecer com ele, pessoa saudável, bem disposta, boa,
amorosa. Adoecer assim de repente? Mas a realidade teve de ser
enfrentada e não demorou muito para que Igor não
saísse mais de casa, passando quase que o dia inteiro deitado,
drogado pelos remédios que lhe aliviava a dor. Foram meses
de sofrimento e desavença. Igor tornou-se, de uma hora
para outra, muito ciumento da esposa. Questionava, acusava e atormentava
Lúcia demonstrando um medo enorme de ser traído
por ela. Lúcia procurava compreendê-lo, mas se viu
acuada não sabendo como agir.
O estado de saúde de Igor foi piorando e ele, num gesto
egoísta, fez Lúcia prometer que jamais se casaria
com outro homem depois de sua morte. Esta promessa tinha de ser
confirmada a cada dia para seu desespero. Igor se despediu da
vida numa noite chuvosa, soltando vagarosamente as mãos
da esposa.
Os primeiros anos, após a perda do marido, Lúcia
se dedicou freneticamente à criação dos filhos
e ao trabalho de costura que fazia para garantir o orçamento
da família.
Às vezes a vida nos oferece uma nova oportunidade. Lúcia
foi agraciada com ela.
Com os filhos já crescidos ela começou a se interessar
por um novo rapaz. Ao mesmo tempo em que estava feliz, se sentia
uma traidora, pois se lembrava de quantas vezes tinha prometido
a Igor que jamais se casaria novamente, entendendo aqui por casamento
qualquer relação amorosa.
Questionava consigo mesma, indecisa, se devia ou não ter
outro companheiro. Optou pelo sim. Casou-se com João e
a antiga sensação de culpa deu lugar a um novo amor.
Foi um relacionamento tranqüilo até que a mãe
do novo marido adoeceu. João era filho único e a
levou para morar com eles. Novamente Lúcia se viu ocupada
com doença. Lembrou-se dos tempos que cuidava de Igor e
muitas vezes se angustiava achando que não merecia passar
novamente por uma fase tão difícil, desta feita
com a sogra.
Quando a mãe de João faleceu, um alívio,
com uma pitada de culpa, tomou conta de Lúcia. Agradeceu
a Deus por ter dado conta do recado e se alegrou constatando que
ela e João eram bastante saudáveis. Chega de doença
e ponto.
O casal passou por alguns poucos anos de calmaria. João
adoeceu. Pela terceira vez estava Lúcia às avessas
com mais doença. Bem no íntimo pensava consigo mesma:
será que esta sina tem a ver com a promessa que fiz e não
cumpri? Vários meses às voltas com o tratamento
de João que foi em vão. Ele não resistiu.
Morreu numa manhã ensolarada, soltando vagarosamente as
mãos da esposa.
Outra vez sozinha, ainda uma jovem senhora, Lúcia segue
sua vida. Batalhadora que é não se deixou esmorecer.
Vive cada dia desfrutando o agora. O futuro a Deus pertence e
ela quer tê-lo promissor.
Quando lhe falam sobre um novo amor ela responde com bom humor:
- quem se aventuraria se candidatar a se casar com uma pessoa
que teve a desventura de enterrar dois maridos? Entretanto a sua
fisionomia, no mesmo instante, toma um ar de tristeza. Recordação
para ela não é nada bom.
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