Flávio Dias Semim
Presidente Prudente / SP
As duas faces do Amor'al
Até algum tempo, a profissão de contínuo
foi muito conhecida, pois era exercida por uma pessoa, de qualquer
idade, desde que empregada em um escritório, mais comumente
em repartições públicas e que prestava os
serviços bancários, de entregas, correios e outras
mais atividades essas a que denominamos hoje de office boy.
Valdemar, um tipo simpático, franzino, olhos claros e pequenos
que lhe davam um semblante maroto, fino nos gestos e muito educado
no falar, um verdadeiro bom-de-papo, era um profissional dessa
área. Profissional mesmo, pois nunca se atrasava no horário
de chegada ao serviço, jamais faltara um dia sequer e extremamente
cumpridor de seus deveres no trabalho. Casado há muitos
anos, vinte e cinco mais ou menos, com Divina, esposa dedicada,
meiga, poucas palavras e muita afável com quem tinha três
filhos, um deles homem. Nada deixava faltar para a família
desde que adaptado ao salário de funcionário público.
Até seguro de vida ele tinha e como beneficiária
a esposa, assim gostava de divulgar.
Motivo de uma crise conjugal ocorrida após dez anos de
casados iniciou-se minha amizade com o casal, quando Divina, em
prantos veio ao meu escritório e queria a separação
do Valdemar, alegando motivos para ela trágicos, porém,
após breve conversa se pode observar que não eram
de nenhuma gravidade, apenas discórdias conjugais, pequeno
desentendimento de marido e mulher. Reunidos os três, não
foi difícil de minha parte apaziguar os ânimos e
conciliar o entendimento entre ambos, em vez de promover a procurada
separação.
Por isso e por passar o casal a viver em paz formou-se entre nós
uma amizade duradoura e sincera que se estendeu além do
profissionalismo, passando a nos tornar amigos particulares, incluindo
a companhia dos nossos familiares e com mútuas visitas
as residências. Amizade sincera gera confidências
e Divina não se cansava de confessar que fora uma tola
naquela ocasião do desentendimento, que não tivera
razão e muito menos motivo para desacreditar de seu querido
Valdemar, mostrando a quem quisesse ver e ouvir o seu amor pelo
marido e demonstrando uma ternura imensa, sem exigir nenhuma prova
do oposto. Anos seguidos fui testemunha daquele verdadeiro idílio
existente entre ambos, daquela paz duradoura entre Divina, Valdemar
e seus filhos. Ele permanecia fiel ao seu trabalho na repartição,
pontual, cumpridor de seus deveres em todos os dias úteis
da semana e dedicando o domingo à companhia da família
e os sábados ao seu divertimento preferido, ao seu hobby
único: jogar tênis no Clube Inglês.
Algumas pessoas estranhavam o gosto do Valdemar, o seu passatempo
preferido não coerente com um contínuo de repartição
pública, portanto incompatível com seu salário,
com seu modo de vida e com a condição social dos
frequentadores daquele clube e daquele esporte. Porém,
Valdemar respondia a quem o questionava dizendo que o que o atraia
e fascinava era o comportamento, a finesse e o trajar empregado
na atividade esportiva dos companheiros daqueles encontros aos
sábados. Por isso, Valdemar saia todas as semanas muito
bem arrumado, com sua melhor camisa, calça vincada, sapatos
polidos, barba raspada, cabelos sempre bem cortados e sobre a
cabeça um boné tipo italiano, levando sua maleta
de mão e sua raquete. Anos seguidos a rotina seguia com
Valdemar saindo para seu trabalho ou seu lazer e se despedindo
carinhosamente da querida Divina todas as manhãs e voltando
ao anoitecer, menos aos domingos, pois os domingos eram sempre
e sempre dedicados exclusivamente aos seus queridos familiares.
Naquele fatídico dia o telefone de meu escritório
tocou e a notícia veio violenta, atordoando meus pensamentos,
já que Divina, aos prantos, com a voz embargada dizia que
o Valdemar havia sido internado, às pressas, socorrido
diretamente da repartição, em estado grave. Corri
imediatamente para o hospital, porém, ao chegar Valdemar
já estava a caminho do necrotério, corpo coberto
dos pés a cabeça, atingido por um fulminante colapso
do miocárdio.
No funeral muito simples, caixão modesto e barato, somente
familiares e amigos mais chegados consolavam a viúva envolvida
em um vestido preto obtido as pressas que mal contornavam seu
corpo de curvas já não acentuadas, mas simbolizava
seu luto e externava seu imenso sofrimento. Desesperada bradava
ao mundo seu amor pelo defunto, as qualidades daquele que por
vinte e cinco anos tivera por companheiro fiel e dedicado. Mergulhada
em desespero chegou a desmaiar por duas vezes durante o velório
e a dor da esposa enlutada era compartilhada por amigos e parentes
presentes na caminhada da última morada.
Do Clube Inglês não se viu ninguém, nem um
representante, nem um companheiro de esporte, nem uma coroa de
flores, nenhuma mensagem de condolências, nem mesmo uma
simples rosa. Nada.
Até a missa de sétimo dia a viúva continuava
depressiva, derramando lágrimas dia e noite apesar da tentativa
de todos em consolá-la, porém com pouco êxito,
pois Divina só enaltecia as qualidades do falecido.
O tempo, no entanto, é o remédio de tudo e para
tudo e alguns dias mais, parcialmente aliviada de seu sofrimento,
encarando a realidade, corajosamente Divina juntou os pertences
e as roupas de seu querido esposo para doar a algum necessitado.
Camisas, calças, meias, sapatos, tudo separado e embalado
carinhosamente na esperança que alguém, com as mesmas
virtudes e os mesmos valores do seu Valdemar fizesse proveito
daquelas vestimentas. Um a um dos vestuários foram lavados,
passados e dobrados, especialmente aquela calça branca
de gabardina, uma das preferidas e que ele usou recentemente quando
de suas idas ao clube, aos sábados. Revisava antecipadamente
toda a peça, verificando cuidadosamente quando notou um
papel sutilmente colocado bem no fundo do bolso traseiro, quase
imperceptível. Era um envelope cuidadosamente dobrado,
alisadinho, trazendo no seu interior uma carta! Curiosa antes,
trêmula depois, Divina abriu e começou a ler o conteúdo,
notando antes uma forma de boca aplicada no papel branco como
se fosse uma marca d’água, sombreada em vermelho.
Mais atentamente percebeu que era a forma de um beijo transferido
de lábios pintados e firmado no fundo do papel da missiva.
Em linhas carinhosamente escritas, delicada caligrafia feminina
expressava declarações de amor eterno endereçadas
ao Valdemar. A data era recente, mas as juras indicavam a continuidade
em viver intensamente na forma como todos os sábados que
já passaram juntos por tantos e tantos anos que já
se foram: uma vida! Carinhos e declarações afetivas
transbordavam do papel, escorriam carregando a tinta rubra do
batom e atingiam Divina com a mesma violência das lavas
derramadas de um vulcão em erupção. A confissão
expressa da missivista pela predileção do falecido
em acariciar os seus cabelos longos envoltos no rosto, na alma,
na vida dela foi como um soco no estômago, já revirado,
da leitora. O sutil perfume do papel tão bem guardado entupia
suas narinas, sufocando-a. As letras manuscritas com tanto carinho
enchiam seus olhos de lágrimas, inundando-os como a terrível
invasão das águas em um navio naufragando. A sua
rosada pele agora refletia um branco mais intenso do que o do
papel que tinha em mãos. Seu coração disparado
palpitava descontroladamente a cada palavra que lia e sua razão
não aceitava a existência daquele momento, como atingida
por um golpe no peito. Chegou as portas do desfalecimento ao deparar
com o nome assinado ao final, abreviado: LÚ.
Sentou na cama daquele quarto que venerava, que tinha em seu teto
e suas paredes o testemunho das tantas e quantas vezes se entregara
de todas as formas ao seu querido marido, por tantos anos, sem
jamais cogitar por tal situação. Vagarosamente,
corajosamente procurou ordenar seus pensamentos e voltar a seu
discernimento. Lentamente a tontura foi passando e dando lugar
a um leve sentimento de rancor que cada vez mais se avolumava
como querer sair por todos os poros de seu corpo em brasa. Uma
raiva incontrolável passou a exteriorizar por todas as
formas e através de todos os nervos de seu corpo tenso.
Uma tremedeira, agora de furor, esbugalhou seus olhos; suas narinas
não mais entupidas, em chamas soltavam lavas e de sua boca
zangada saiu um grito alto, forte, violento, nunca dito antes:
-Filho da puta!
E caiu desmaiada, deixando a singela missiva escorrer por seus
dedos, pela mão mil vezes furada e dilacerada por suas
unhas cravadas, molhada pelo suor de todo o seu corpo.
Socorrida, Divina ficou em observação médica
por um dia, no pronto socorro mais próximo. Alta obtida,
cabeça no lugar a base de sedativos, passou a analisar
o passado com lembranças de um nome que lhe ferira mortalmente,
gravado com ferro ardente no seu cérebro: LÚ. Então
era ela! Lucimeire, a copeira da repartição! Valdemar,
algumas vezes, em conversa familiar enaltecera a qualidade daquela
biscate, elogiando o sabor do café que ela servia. Chegou
a mudar de marca, por várias vezes, do pó de café
comprado na tentativa de igualar com o de sua casa o sabor daquele
feito na Repartição Pública! Ah! O que ele
queria mesmo, concluiu, era sentir o aroma da piranha, mesmo de
longe, durante os dias da semana. E a panqueca? Jamais comera
outra panqueca igual a da Lucimeire, dizia o verme de quando em
vez. Aos poucos e devagar o raciocínio funcionava trazendo
esclarecimentos: e os amigos do Clube Inglês, que nem sequer
vieram ao velório? Não poderiam vir mesmo, pois
não existiam! E a raquete de tênis, sempre polida,
impecável, cordoalhas sempre rígidas, não
se conservava por ser importada, de alta qualidade e sim por não
serem nunca usadas! Boné italiano no clube inglês,
por que nunca pensei nisso? Mas é lógico que na
repartição não se faz panquecas!
Passados alguns dias, não sabendo ainda exatamente se seus
sentimentos eram de raiva intensa ou só tristeza, só
vazio, sentindo apenas uma vontade de ajoelhar diante da tumba,
apenas ajoelhar ali perante a sua morada eterna, Divina resolveu
ir ao cemitério cuidar do túmulo, lavar e desfazer
das flores e coroas enviadas pelos amigos no funeral, pois já
deviam estar podres e mal cheirosas. Não foi o que viu,
pois encontrou a laje límpida, pedras lavadas e polidas
e dois vasos com flores, um de cada lado, rosas vermelhas e cravos
brancos adornando a cama final do descarado, cretino, sem-vergonha.
Sobre a lápide julgou ver escrito um nome, quase apagado,
como querendo esconder por mais tempo a verdade, um pó,
quase uma sombra: LÚ.
Irada, raivosa, num acesso de fúria atirou longe os vasos,
chutou as rosas e os cravos, pisoteou centenas de vezes o tampo
em granito que selava a cova gritando mil palavrões, xingando
cada um dos ex-amantes com todos os nomes feios que conhecia,
fazendo palco para uma cena que se não fosse trágica,
seria hilário.
Dias depois, mais calma, até arrependida de sua fúria
anterior, voltou ao cemitério e encontrou novamente a laje
límpida, pedras lavadas e polidas e dois vasos com flores,
um de cada lado, rosas vermelhas e cravos brancos adornando a
cama final do desavergonhado. Sobre a lápide julgou ver
escrito um nome, quase apagado, como querendo esconder por mais
tempo a verdade, um pó, quase uma sombra: LÚ.
Sem perder a tranquilidade, desta vez simplesmente abaixou a cabeça,
relaxou todos os músculos possíveis do corpo, deixou
os ombros caírem e suspirando fundo volteou em direção
à saída caminhando a passos vagarosos pelas silenciosas
alamedas daquele campo santo. Ao transpor o portal principal e
passar sob a sombra de uma frondosa árvore, teve a cruel
sensação de ver no solo a luz projetada pelos raios
do sol transposta por entre alguns de seus ramos e folhas formando
um escrito em letras garrafais, um nome: LÚ...
Nunca mais retornou àquele supulcrário.
Ligou-me outro dia a Divina, querendo saber se poderia anular
o casamento feito há mais de vinte e cinco anos com o Contínuo,
forma com que se referia ao falecido, desde que se recusava a
pronunciar novamente o nome daquele desprezível verme,
conforme suas próprias palavras. Respondi que não,
mesmo porque ela não era mais casada, pois passou a condição
de viúva, seu estado civil atual. Do outro lado da linha
ouvi sua risada, entre as palavras “-é mesmo... é
mesmo...” Perguntei-lhe se estava bem e como resposta ouvi
que nunca estivera melhor, era livre, recebia pensão do
Estado e até uma boa casa havia comprado com o dinheiro
do seguro de vida, deixando de pagar aluguel como sempre fez o
Contínuo. Mesmo à distância percebi que aquele
sorriso de escárnio estava marcado com uma linha espessa
trazendo a mostra várias rugas recém-chegadas à
sua face plúmbea. E ouvi mais risos, tantos que foram gradativamente
aumentando, aumentando até se transformarem em gargalhadas
e cada vez mais fortes, mais ruidosas e mais duradouras, que me
obrigaram a desligar o telefone após algum tempo, sem poder
concluir se foram gargalhadas de ciúme, de vingança
ou de satisfação.
Hoje ainda penso que era o gargalhar de uma louca.
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