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José Faria Nunes
Caçu / GO

 

 

De novo, o Natal

O jingle natalino adentra pela janela do escritório e Jurandir se sente atraído. Levanta-se, vai até a janela. Chamam-lhe a atenção duas crianças maltrapilhas, descalças, sentadas no meio fio da rua. Embevecidas admiram o Papai Noel que se aproxima em uma caminhonete. Pelo alto-falante músicas natalinas ganham os ares e conquistam os ouvidos dos moradores das proximidades e de quem por ali passa. 
Jurandir pergunta a si mesmo, consciente de que não terá resposta: por que melodias natalinas chamam-lhe tanto a atenção?!
Na caminhonete o Papai Noel vestido a caráter, com um microfone anuncia as promoções de uma loja de importados. Com ele na carroceria algumas crianças distribuem acenos de beijos a quantos lhes prestem atenção. 
Absorto em pensamentos vagos Jurandir volta-se e, como autômato, senta-se em sua cadeira de executivo. Perscruta o ambiente em seu entorno: o raque com a impressora, celulares com chips, tabletes, tudo de mais moderno em tecnologia digital. 
Na mini estante do raque alguns livros de sua autoria e outros por ele prefaciados, antologias com alguns de seus poemas e contos premiados.
Do outro lado uma tela retangular, 50x60, lembrança de quando se meteu a pintor, ofício que abandonou ainda na juventude, assim que percebeu não ser a pintura o seu forte. 
Lá fora as músicas natalinas e a voz do Papai Noel se esvanecem no espaço, mas Jurandir se compenetra no clima natalino. Em suas reflexões o retratar de uma nova realidade: além do rádio, como de há mais de meio século, a badalação da festiva data transcende para outros recursos de mídia, impressa, televisiva e eletrônica. 
Jurandir liga o no-break e o PC e, enquanto aguarda as imagens surgirem na tela de cristal líquido, contempla o espaço ao seu redor. Mergulhado em suas lembranças volta-se para a parede oposta à do raque do computador. As estantes com livros conduzem-no aos tempos de acadêmico de Direito e Jornalismo na capital do Estado. Jornalismo por opção, Direito para o agrado dos pais, que o queriam advogado.
O estardalhaço do ronco de uma moto retira Jurandir da sedução das lembranças, transporta-o para a realidade.
Longe se foram os tempos em que até fome passara dadas as dificuldades financeiras e sociais da família.
Na tela do computador a foto do primeiro neto em pose de astronauta, brincadeira de seus três bem vividos aninhos. A netinha também se ocupa de modernos brinquedos, inclusive eletrônicos. 
Jurandir vê-se a enxugar duas lágrimas dançarinas dos olhos. Não distingue se frutos da emoção pela superação do ontem perverso ou se pelo desencanto ante as perspectivas do amanhã. 
Em que pesem os avanços científicos e tecnológicos testemunhados e a vivência, própria e familiar, dos modernos recursos da pós-modernidade, Jurandir tem saudades daquele ontem, de sua humilde infância. Saudades da infância de crueza dura, da infância na roça, adolescência na cidade sem recursos. Rusticidade ímpar da cidade e dele com a família. 
Nos tempos atuais em sua rua, amiúde, novos carros de som com jingles natalinos concorrem com os recursos da mídia eletrônica no arrastão da sociedade de consumo capitalista com apelos sedutores: é felicidade à venda nas melhores lojas e butiques da cidade, com presentes para toda a família sem se importar se contrabandeados do Paraguai ou se importados da China, com redução dos lucros da indústria nacional.
Afinal é Natal e todos devem dar e receber presentes, apesar das nem tão eventuais inadimplências nos primeiros meses do novo ano.
Serasa é algo para não se preocupar agora. Só quando a corda arrochar nos primeiros meses do novo ano. 
Jurandir relembra o seu ontem e o compara com o hoje. Levanta, vai até o lavabo, mira-se ao espelho.
Sorri. A criança que queimava os pés no quente da areia para levar comida para o pai na roça de toco hoje celebra o luxo e o conforto de um mundo globalizado.
O grisalho dos cabelos a ornamentar a auréola de uma careca que lhe dá ares de intelectualidade.
Assim ele se sente, pois assim a comunidade o considera: um intelectual.
Toca o telefone: é sua filha caçula, adolescente, que reside na capital de outro Estado onde fora para estudar. Ela deseja Feliz Natal para ele, para a mãe, para a irmã mais velha, o cunhado e o casal de sobrinhos.
Nessa hora Jurandir, que todos os motivos tinha para celebrar, para comemorar, desperta-se para a solidão do sucesso.
De novo na janela volta os olhos para a paisagem, mas nada vê. As duas crianças não mais estão ali. O que ele vê é o filme do Natal, Natal de ontem e de hoje, tão diferentes e tão iguais. 
E de novo enxuga duas lágrimas enquanto outra vez vai atender ao telefone. Afinal, o tempo não volta atrás, senão na memória.
Amanhã será, de novo, Natal.

 

   
Publicado no livro "Contos Ardentes" - Edição Especial - Janeiro de 2015