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Cleverson Camelo Silveira
Luziânia / GO

 

Quarto 307

(...) E se tu olhares, durante muito tempo, para um abismo, o abismo também olha para dentro de ti.” (Friedrich Nietzsche)

Um Chevrolet Caravan 86 em alta velocidade sangra a rodovia rumo à próxima cidade. Na direção Rosálio Largo, um homem atormentado pelo seu próprio passado.

Suas mãos no volante deslizam com o suor, enquanto o Sol no horizonte se despede rapidamente. Está tentando bloquear algo em sua mente. É doloroso, mas se esforça até atingir um tímido alívio. “Estranho...!”, cogitou silenciosamente, pois sentiu que alguma coisa, talvez uma presença, lhe fizesse companhia. Seria o vento? “É o vento escorrendo sobre a velha lataria da Caravan..., é o vento!”, concluiu..., erroneamente.  

Não consegue se desvencilhar da imagem da esposa e da filha com seus olhos inertes lançados sobre um homem abatido, derrotado. “Acostuma-te à lama que te espera!” era um verso inscrito na traseira de um caminhão a sua frente.

“Rodaras um milhão de quilômetros e eu estarei sempre a um passo atrás de você.” Estas palavras ecoavam baixinho no interior do carro, levando Rosálio ao ápice do arrependimento. Mas é tarde, não pode mais voltar.

Logo a frente, às margens da rodovia, há um pequeno vilarejo com alguns atrativos, como um hotel de médio porte, além de um posto de combustível e uma conveniência que, juntamente com as prostitutas locais, ficam disponíveis vinte e quatro horas. Um majestoso local de montanhas e colinas, cuja vista dava direto para a cidade onde quer chegar. Era como um lençol de luzes derramado no horizonte negro.

Estacionou ao fundo, sob um velho pinheiro. O sono que lhe pesava foi desfeito pela imagem de uma jovem que o observava descer do carro. Nada, porém, que merecesse um contato direto, se bem que o olhar da moça despertava prazeres inimagináveis, inibidos pela desconfiança de um homem sem identidade.   

Pediu uma chave e subiu direto ao andar terceiro, quarto 307. Ao abrir a porta, foi surpreendido por uma rosa vermelha e por um cartão de visitas, que saltavam a vista, sobre uma pequena mesa que o proprietário instalara ali inutilmente.

O cartão trazia a foto de uma bela mulher, juntamente com um número de telefone e os dizeres “INVESTIGADORA DO PRAZER”. Foi apenas o que leu, jogando o cartão sobre a cama e deixando de lado a rosa.

Nada parecia trazer a tranquilidade, nem mesmo aquele banho gelado. Após saciar o estômago com algo que trazia na mochila, despejou-se sobre a cama. Na verdade, um colchão murcho sobre madeiras que rangiam irritantemente. Mas era o que tinha. Acordou duas horas depois, com o suor lhe escorrendo sobre o rosto, despertado por uma sensação de excitação latente que ardia sobre seu tórax, como mãos que lhe massageavam lascivamente.

Porém, não percebera que tivera tomado em sua mão direita o cartão da bela jovem, que aliás o observava simpaticamente..., ali mesmo, ao pé da cama.

Surpreso e assustado, Rosálio se viu frente a frente com o inexplicável. Uma situação paradoxal!

– Huuum, você me parece tão interessante quanto sua voz ao telefone! – disse ela graciosamente, aproximando-se.

– Não me lembro...

– Bom, às vezes nossos desejos agem misteriosamente. Mas poupe suas palavras – continuou ela, enquanto escalava a cama esbanjando sensualidade.

Carlos não poderia resistir àquele encantamento! Presença feminina de porte irresistível, seu corpo não apresentava deformações estéticas de ângulo algum. Seus cabelos negros e medianos, pareciam cantar sinfonias de silfos. Delirantes olhos castanhos, que no conjunto do rosto eram como o carvão virgem que acendia ardentemente a libido de Rosálio.

Suas vestes eram como sua própria pele com todas as saliências e proeminências volutuosas que seu corpo poderia expor.

A essa altura as carnes ardiam como o azeite em fogo eterno. Nada que Rosálio já havia experimentado. Tudo que um homem poderia desejar.

Simbiose delirante, pudores ardentes que queimavam como a luz do quarto que ardia sobre os olhos de um homem abandonado sobre uma cama fria e amarrotada, às três da madrugada. Um silêncio frio e desagradável que foi quebrado por gritos que vinham lá de baixo, do bar – malditos beberrões que alimentam seus desejos com as futilidades da solidão matinal. 

Consciência inquieta, desceu e não hesitou em perguntar ao homem do balcão sobre a mulher.

– Não há mulher aqui rapaz – respondeu em tom seco.

– Uma jovem de uns...

– Olha meu amigo..., há anos não temos mulheres jovens por essas bandas – o homem explicou. – Somente nossas patroas.

– Achei que...

O homem o interrompe, percebendo que Rosálio tinha nas mãos o cartão da jovem.

– Sobre esse cartão, vou lhe dizer: quero pegar o desgraçado que anda espalhando-os em meus quartos. Não conhecemos essa jovem. Vá embora.

Sem palavras, Rosálio deixa o vilarejo e volta para a estrada.

Os faróis incessantes mantêm suas pupilas acesas. As pupilas de um homem aterrorizado e perseguido por seus próprios temores. Perspectivas perversas que se encerram numa curva tomada por uma leva de pessoas, aglomeradas em volta de uma grande parafernália de destroços irreconhecíveis de um automóvel, que à medida que iam sendo recolhidos pelo pessoal do resgate revelavam o corpo de um homem vestido de branco em intenso contraste de cores escuras e vermelhas. Nenhum suspiro de vida se evidencia. Ao lado do corpo, ali sobre o asfalto escorregadio, ora vermelho ora negro, seu braço esquerdo se estendia dilacerado. Cerrado em sua mão uma rosa vermelha, já triste e murcha.

A essa altura Rosálio já não se reconhecia mais. Parecia vagar no vazio, com pessoas indo e vindo e emitindo palavras que ele não conseguia compreender. As vozes eram nítidas, mas indecifráveis, como indecifráveis eram as razões que o colocavam diante de si próprio, numa inquietante dualidade entre as trevas e a sensação de serem estas inevitáveis, sobrepostas a uma voz suave que sussurrava docemente:

– Vamos...! Agora somos apenas nós dois..., eternamente.

 

   
Publicado no livro "Contos Ardentes" - Edição Especial - Janeiro de 2015