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Lourival da Silva Lopes
União / PI

 

Cantiga de escola

- “Boi, boi, boi, boi da cara preta/ pega esse menino que tem medo de careta...”
- Eita menino que chora! Lá vem o boi, ele pega menino chorão.
- O bicho vai te pegar, não saia de casa! A mamãe vai quebrar coco para fazer azeite e temperar o feijão.
O babaçual  era perto de minha casa. Eu, criança, não sabia de nada. Apenas acreditava naquilo que minha mãe ensinava. Me ensinava a ter medo, que era o medo como defesa, como precaução. Era o medo para evitar o pior, a coisa ruim.
Antes de completar seis anos, minha mãe me “desasnava”, ensinando-me o a-b-c:
- Que letra é essa, menino? – Perguntava-me cobrindo a letra com um papel que tinha um buraco que mal dava para divagar a letra.
- Não sei, não, mamãe.
- Eita menino burro, aposto que não vai “desasnar”!
“Desasnar” era deixar de ser burro, era aprender as letras e depois soletrar. Minha mãe queria que, quando eu fosse estudar, em União, já soubesse soletrar as palavras, escrever meu nome.
Ao completar sete anos, finalzinho de 1965, meus pais me preparavam para entrar na escola primária, pois, segundo eles, queriam fazer de mim gente. Acho que é por isso que minha mãe queria que eu “desasnasse”, deixasse de ser burro, analfabeto e virasse gente. Eu não poderia imaginar como seria essa escola, fiquei com medo, medo do “boi da cara preta”, da onça, do bicho da mata.
Para chegar à escola, eu tinha que atravessar o rio Parnaíba. A primeira vez que fiz a travessia, eu tinha um pouco mais de um ano, na maior enchente que o rio tivera, em 1960.
- Tem que estudar, menino! – Bradava meu pai. – Quero te ver um homem sabido.
O início das aulas era em março. O ano era 1966. A escola ficava em frente à Praça do Mercado, onde funcionava a Escola de Comércio Marcos Parente. Com cara de choro e meu pai segurando o meu braço, chegamos à escola. Havia uma grande movimentação, muita gente, crianças, que, como eu, iriam também começar a estudar.
- Não chora, rapaz, tu é homem ou não é?
Segurei o choro, mas meu coração batia tão forte que, por um momento, pensei que ia saltar fora. Nunca tinha visto antes tanta gente. Na minha cabeça não passava outra coisa que não fosse o “boi da cara preta”.
De repente, surge um grupo cantando umas músicas que eu não conhecia, dançavam e pulavam. E um dos meninos se destacava com uma máscara, com chifres. Me lembrei da música que minha mãe cantava: “Boi, boi, boi, boi da cara preta? Pega esse menino que tem medo de careta”. Puxei meu braço das mãos de meu pai e saí, como um foguete, por entre as pessoas, correndo em desespero e chorando alto. Desci o morro em alta velocidade, sem olhar para trás, mas ouvi a voz de meu pai:
- Espera, filho de uma égua, tu me mata de vergonha.
Meu pai, ainda moço, conseguiu me alcançar, pegando forte em meu braço e apertando firme. Tive que ceder e voltar, assustado, para a escola. Foi, ali, na escola, que começou a minha primeira, e mais duradoura, tortura.

 

   
Publicado no livro "Contos Ardentes" - Edição Especial - Janeiro de 2015