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Eduardo dos Reis Brito
Taciba / SP

 

O vendedor de picolés

Tarde... a chuva perdurava e o céu era uma analogia ao semblante da jovem mãe. Ninguém conversava na casa, o assunto teimava em cair de forma fina de um céu que era aclamado como sinal de solução. Neste dia não era, nem solução e muito menos de esperança.
Um dia antes, os três filhos olhavam o labor de sua mãe com a esperança de que naquele ano, o natal seria diferente, o pai... desempregado,  desesperançoso  e desacreditado com sua lata de carvão e seus poucos espetinhos de uma carne quase vencida por falta de vendas.
O trabalho da mãe... congelou cem picolés em seus únicos palitinhos e embrulhou-os com o mesmo carinho que acalantou seus três rebentos, lá estava a esperança de um jantar digno, e para ela apenas isso...  felicidade  jamais faltaria no natal.
Todos os gelos colorido era observado pelos filhos sob dois desejos, o primeiro, impossível, pois era saborear aquele arco-íris doce e brilhante que reinava na frente de seus olhos, o segundo possível sim, pois era vendê-los no dia seguinte e trazer para casa o que seria a ceia de natal. O que não estava no imaginário de mãe, pai e filhos eram os ventos que vieram do sul, trazendo já na quente madrugada uma reviravolta nas esperanças da mãe.
Amanheceu garoando, garoa paulistana, sem fim, sem cor, sem prazer, sem esperanças! Junto com as desesperanças da mãe, o frio que congelou qualquer perspectiva de que os filhos pegassem suas caixinhas de isopor, as colocassem no pescoço e saíssem para vender o fruto do trabalho da mãe. O pai pegou sua caixa de carvão, mas desistiu, o consolo da jovem mãe lhe aqueceu, pois para ambos, a felicidade não exigia ceia e assim seria.
Um filho foi até a geladeira... duas garrafas cheias de água, alguns limões,  alguns pedaços menos bonitos de carne enfiadas em alguns espetos de bambu, nada muito atraente, então abriu o congelador!
Aquele arco-íris novamente! Não podia acreditar que coisa tão bela não seria motivo de alegria naquele dia. Fechou a geladeira e abriu sua mente num clic tão imediato como o apagar da pequena lâmpada ao estalo da borracha bater na porta do velho refrigerador. Teve uma idéia!
Aquele filho correu para o quarto, vestiu sua roupa mais velha antes de se agasalhar com o moletom que já havia pertencido aos seus dois irmãos. Saiu do quarto com um olhar diferente ao que ressonava naquela casa e logo solicitou:
- Mãe, põe 20 aqui na minha caixa, vou ver se consigo algo.
A mãe relutou, os irmãos desestimularam, o pai seguiu calado, mas após tanto desmerecimento, o menino saiu. Dobrou três esquinas e encontrou o ponto de ônibus. “Ali não!” pensou, pois estava muito perto seguiu alguns pontos a mais, a garoa já encharcava seu moletom, mas seguiu adiante.
 Parou num terreno baldio e saiu de trás de uma mureta carcomida e pichada apenas de shorts. Sem camisa, descalço sentou-se no ponto e começou a tremer um tremor que era mais de esperança do que de frio
O menino, ali, quase nu, e sua caixa de picolés ao lado causavam certa comoção, afinal qualquer transeunte sabia que seria impossível vender algo, e por ser impossível, eu fui o primeiro a comprar um picolé, pois vi que ele precisava de incentivo, dei a uma criança que passava, pois de fato não queria, e acredito que outros fizeram o mesmo. 
A surpresa foi grande quando retornou em sua casa com a caixa vazia e pronta para nova investida. Preferiu não falar o que fizera, deixou os méritos ao acaso, e por que não poderiam ter sorte afinal?
O garoto ainda retornaria com sua caixa mais três vezes neste dia, o dia em que ele vendeu os cem picolés de sua mãe.
Dia frio, chuvoso, cinzento, mas que se transformou numa noite linda, com uma grande ceia de natal para aquela família que se contentava com a felicidade, mas mais ainda, com a certeza de possuírem filhos especiais.
Os anos se passaram e reencontrei o garoto que hoje, me contou sua tática de vendas, me senti a princípio um tolo, mas depois vi que era apenas mais um dentro da certeza deste menino de que as pessoas são boas e que por mais que pareça o contrário dentro de uma metrópole cruel onde cada um olha apenas para seus próprios problemas, ainda existem pessoas que carregam Deus dentro de si, seja para amar o próximo, seja para comprar um simples picolé.

 

   
Publicado no livro "Contos Ardentes" - Edição Especial - Janeiro de 2015