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Teresa Cristina Cerqueira de Sousa
Piracuruca / PI

 

A afilhada do Coronel

Era noite de luar no interior do Piauí.
Isabel era jovem e de uma beleza ímpar para uma cabocla criada desde cedo usando roupas e calçados doados pela madrinha e suas filhas.
Ainda antes das galinhas irem se deitar, a jovem cuidara de tomar um banho e, depois de se vestir, caminhar para a casa da fazenda com um sorriso de quem sabe que vive sossegada. Acontecia-lhe que todas as festas realizadas ali não podia ir. O padrinho, o velho Coronel Britto, que era Intendente da cidade, dizia-lhe que havia muitos gaviões nessas ocasiões e era melhor que ficasse em sua casa longe do “bote” deles.
Não que Piracuruca fosse modelo de zona urbana para a segunda metade do século XIX, todavia, pela religiosidade havia um efervescente movimento nas ruas e praças por ocasião do novenário da padroeira, o que fazia de os bailes serem muito movimentados.
Era o caso de muitas famílias fazerem antes dessas festas uma reunião com direito a comidas e bebidas para convidados mais ilustres. Então, por motivo de Isabel estar já com dezesseis anos, nesta época, o padrinho lhe permitira estar no meio das conversas à noite. O que o espairecia muito já que a afilhada era-lhe toda atenção nos pedidos de cafezinho e, especialmente, nas conivências dos causos que contava.
É interessante comentar que Isabel seduzia sobremaneira ao padrinho com sua risada nordestina, aquecida pelo viver feliz em terras calmas interioranas.
Entretanto, havia motivo de Isabel para tal bonança de bem-viver no lugar.
Era costume das redondezas que os patrões engravidassem as caboclinhas que trabalhavam na cozinha. Esses filhos, tidos por bastardos, não eram registrados e nem podiam frequentar a casa da esposa do pai ou os outros filhos deste.
Ora, muitas das amigas de Isabel, mocinhas novas, estavam já embarrigadas ou sofriam abusos de homens, que se diziam da sociedade. Mas reconhecia-se que o Coronel Britto tinha um carinho e um cuidado por sua afilhada. O que se sentia que nada disso iria, por ventura, lhe ocorreria.
E Isabel não duvidava que a madrinha também a protegesse com o mesmo esmero do padrinho.
Estes, esta noite tinham-na convidado para frequentar a casa, logo após a celebração da novena.
Isabel não gostava de ficar de conversa com as moças da cidade. E mesmo, era muito envergonhada para se atrever a fazê-lo por iniciativa própria.
Resolveu permanecer em um canto da sala olhando as roupas e calçados das mulheres ricas, talvez com um tico de deslumbramento. Se bem que se podia dizer que as sandálias que usava eram um presente da madrinha e ainda estavam em bom estado de uso, e ainda, não sabia andar muito bem de sapatos. No fim, eram calçados feitos pelo sapateiro local e serviam para calçar os pés de modo confortável até por um bom tempo. Ah, que durariam muito!
Gabar-se de Isabel que era uma boa cozinheira, ou dizer que sabia fazer um ótimo café, era o mesmo que arriscar-se que pensava em casar. E isso não. Quando o padrinho ouvia um homem mais afoito falar com ela, ouvia-se um proferir de palavras que tinham sempre o mesmo sentido:
_ Deixem minha afilhada em paz!
Algumas vezes ia à praça com a madrinha, o que lhe custava olhares dos marmanjos nas calçadas. Um traço singular das mulheres piauienses é que elas abaixam a cabeça e coram com vergonha de encarar o admirador. Essa natureza tímida e de moça prendada é o que fazia com alguns homens das redondezas admirassem mais ainda Isabel.
Para cuidar da comida da casa, ela tinha de acordar cedo motivo pelo qual se retirou logo que serviram doces e bebidas e os convidados resolveram ficar de conversa um tanto política na varanda da casa.
_ Benção, madrinha.
_ Já vai, minha filha?
_ Sim, madrinha, eu tenho de fazer bem cedo um doce de goiaba pro padrinho. Vou pedir a benção a ele e irei embora.
Certas ocasiões o padrinho pediria que um menino da fazenda a acompanhasse. Era então uma noite que estava tão atento a ser o autor de contar causos da Intendência para uns ansiosos convidados. Havia nele um ar de despreocupação de que a vida segue seu curso sem medos das cobiças masculinas.
Imagine-se que um visitante estivesse no portão da fazenda esperando por alguma moça desacompanhada. Se alguém viesse me contar que Isabel sempre ia sozinha para casa, já que todos sabiam de ser ela afilhada do Coronel Britto, eu acreditaria na coragem de ela o fazê-lo em noites enluaradas.
Atribuiu-se o grito que se ouviu ao medo de Isabel de ser agredida por um tarado. Dos homens que estavam na residência do Coronel Britto, apenas este não correu. Creio que a idade e as pernas ficaram fracas do susto, razão de o Intendente ter ficado sentado em sua preguiçosa esperando o prosseguir dos acontecimentos.
Ninguém contestou quando ele exigiu que o filho do Coronel Machado casasse com Isabel para limpar-lhe a honra. Foi, entretanto, com grande carinho que nove meses depois pediu para ser padrinho do menino que nasceu – Pedro.
Sei que essa cerimônia matrimonial foi realizada na Igreja de Nossa Senhora do Monte do Carmo, por volta do ano de 1879. O Coronel Britto fez com que o padre realizasse um ritual com esmero, e contou com toda a cidade presente. E julgo pensar que muitos casamentos de mocinhas com filhos de coronéis ainda ocorreram nesta cidade.


   
Publicado no livro "Contos de Coronéis (ou) Lobisomens" - Edição Especial - Maio de 2014