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José Luiz da Luz
Ponta Grossa / PR

 

Vulto infeliz

Temei-os. Cemitérios são furnas devoradoras de corpos, ali derrete tanto a carne poluída de vícios como a santa pelas virtudes. Na alcova dos mármores luzentes se esvai em silêncio tudo o que se excitava no calor do sangue, independente das crenças e atos.
Era em uma cidade bucólica, onde reinavam dias monótonos e noites lascivas. Nas noites as ruas eram habitadas por alguns ébrios, uns cães vagantes, insetos e pássaros noturnos, tudo ia conforme a natureza dos simples moradores da pequena cidade. Eu andava insone pela noite quando ouvi súplicas eufóricas dos ébrios numa calçada, acusados por um policial de invasão de domicílio e atitudes macabras, negavam aos prantos.
— Deixai-nos em paz porquanto nossas mãos estão sujas de vermes, porque não as temos sujado com roubos ou atos macabros. Deveis saber que apenas temos sede de delírios. Álcool! É um belo companheiro dos caídos. Queima como a gastrite do diabo, mas anestesia os sentidos com uma ilusão impura.
Cheios de náuseas os ébrios voltaram ao pó da rua. Com minha aproximação a tensão se dissipou. O sargento Poculis deixou-os, porém não antes de cuspir sua ira neles, depois de pedir e examinar meus documentos me acompanhou pelas ruas, pressenti que era também um suspeito.
— Coisa do diabo, caro Loretto — disse o sargento. — Uma espécie macabra está aparecendo nos quintais nas madrugadas. É um monstro. Pela rapidez que pula os muros, voa um cavalo no galope. Procuro uma pista nos vícios e pecados, mas, quem sabe não encontrarei num falso venturoso?
Encostei-me às grades de um portal, pela tensão de poder ser preso, não percebi que fui conduzido ao portal do cemitério. De súbito ele bradou que eu olhasse ao chão.
Que nojo — disse com náuseas.
Estava em cima de uma poça de sangue coagulado e algumas penas de galinha pelo chão, e dei um salto para o lado. Havia um temor em toda cidade, e aquela cena se repetia em muitos quintais.
Quando por impulso tomei o caminho de casa, o sargento sacou algo do bolso e me ordenou que parasse.
— Se fordes inocente, proveis.
Ao voltar meu rosto vi que apontava um crucifixo em minha direção.
— Loretto, tocais neste emblema sagrado, senão provais ser o monstro.
Ajoelhei-me e beijei Jesus Crucificado e caí num ligeiro desmaio, então o sargento me amparou convencido de minha inocência.
Recolhi uma porção daquelas penas ensanguentadas, coloquei-as num pacote que ao acaso esvoaçava pelo vento e disse adeus ao policial.
Aquilo não poderia ser uma fraude, pois algumas pegadas como pés descalços humanos foram vistas, mas os resquícios macabros induziam ao sobrenatural. Um lobisomem já não representava a ingenuidade de pessoas, era a única explicação.
Andei até as portas da igreja matiz, que, ignoro por que, na madrugada estavam abertas. Quiçá, o padre estava em vigília pedindo proteção contra os demônios.
Mostrei as penas e as mãos ensanguentadas ao padre exorcista Pierio, que logo pediu que eu lavasse as mãos, enquanto examinava as penas. Depois que chorei, pedi conforto e orientações acerca do fenômeno.
— Vós trouxestes a solução — falou o padre.
— Como assim?
— Enquanto o povo devaneia eu analiso. Ninguém percebeu, mas tudo começou após a morte de Lorinha, a santa. Filha de fazendeiros, a menina pura prometera servir a Deus num convento, mas por interesses fora obrigada a se casar com Silvo, o coronel. Vestida de noiva fugiu para as matas, logo foi devorada por alguma fera, segui os rastros e somente seu véu resgatei. Como conforto, o véu foi velado e enterrado no cemitério. Seu noivo, dizem que morreu de tristeza. Daí veio o temor de que um lobisomem a atacou e anda por aí.
— Lobisomem — hesitei. — Existe nos medos e lendas.
— Vamos ao cemitério, estamos no fim — ordenou o padre.
Sua convicção era para mim uma teoria, não uma certeza. Submisso à autoridade acatei, como acataria uma aventura numa noite de insônia. Meu andar era movido à inspiração confusa, lenta, e que realizei febril e trêmulo. É difícil entrar num lugar onde para o homem e começa o mistério, onde as paixões se acabam na lama.
Ainda no portal ouvimos uns ruídos vindos do cemitério, seguimos, era um choro de dor como um gemer de insânia. Depois o pranto calou-se aos nossos pés, então fui avisado de que estávamos frente ao túmulo do véu de Lorinha. O padre se abaixou e retirou a tampa tumular que estava apenas encostada, com a voz calma falou:
— Deixai este túmulo.
Meu medo causou uma febre, mesmo assim olhei uma figura peluda abraçada ao véu da noiva dentro do túmulo. “Ai Jesus, saltará um lobisomem? Até onde vão as lendas?”. Enfim, aquela figura saiu e ajoelhou-se diante do padre pedindo piedade. Quando o padre ligou a lanterna eu pude identificar: era o noivo Pietro.
O pobre moribundo foi resgatado e levado ao hospital.
No clarear do dia voltamos para igreja:
— Não entendi nada — falei. — O que está acontecendo?
— Simples! Ao analisar as penas achei um dente de ouro quebrado, somente o coronel tinha uma obturação assim, então estava desvendado. O pobre infeliz sabia que não era amado, mas amava tanto que queria Lorinha mesmo assim. Enlouqueceu de amor e pelo peso da culpa ao saber do triste fim. Passou a vagar procurando-a desesperadamente para pedir perdão. Gritava “volte amor”. A única lembrança que ficou foi o véu enterrado, e no delírio quis morar dentro da tumba para sentir o cheiro dela até morrer também. Saia à noite para não ser visto, e para se alimentar invadia quitais em busca de frutas e galinhas, comia carne crua, pois aprendera no exército nos treinamentos das selvas. Pela barba e cabelos crescidos o confundiram com um lobisomem.
“Pobre homem”. Voltei para casa sentindo piedade por ele.


   
Publicado no livro "Contos de Coronéis (ou) Lobisomens" - Edição Especial - Maio de 2014