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Lourival da Silva Lopes
União / PI

 

Deixem que os mortos entrerrem os seus mortos

Os mortos deveriam voltar, nem que fosse por um momento, para contar suas experiências Post Mortem. Não é justo os vivos ficarem imaginando como seria a vida depois da morte, porque, neste caso, vira religião, privilégio de poucos. Eu imagino uma cena: uma explosão subterrânea em cada túmulo de um cemitério qualquer, de onde saem diversas pessoas com roupas abarrotadas, ou nuas, conforme foram enterradas. Não enxergam nem ouvem, apenas gesticulam e mal conseguem articular as palavras, mas é possível, com muito esforço, entender o que falam. De repente, o mais forte sobe num tronco, quase apodrecido, de palmeira e, gesticulando muito, começa a falar:
- Morri numa sexta-feira treze, de mil trezentos e treze, final da Idade Média e até agora não me aconteceu nada. Não subi ao céu, nem desci ao inferno, apenas senti que minhas carnes apodrecidas foram se desmanchando, virando uma lama gosmenta ao se misturar com o barro. Depois não senti mais nada. Não alcancei a glória, não encontrei o Grande Pai nem o aterrorizante Lúcifer. Então eu peço aos vivos que morram com calma, não tenham pressa, aproveitem o dia, não antecipem suas mortes, não se matem, nem escutem falsas promessas, pois ninguém sabe o que virá. Nem os que já foram. Nada é nada, não vale nada. A única coisa que vale a pena é viver.
Nesse momento, o céu acima dos corpos, magicamente, fica cinzento, com nuvens escuras que se formam no entorno do cemitério, como se fosse uma cobertura de lona escura. No entanto uma claridade intensa se mistura à imagem de escuridão. É uma situação completamente estranha, em que os moradores do povoado saem de suas casas e se aglomeram, estupefatos, para assistirem àquela cena bizarra.
- Eu morri ano passado, disse uma jovem nua sem sexo. Fui vítima de estupro, seguido de morte violenta, coisa absurda. Retorno para dizer que me preocupo com a vida. Fui jogada na lama por uma pessoa sem sentimento, sem coração, um monstro que se fazia passar por gente. Desta sorte, tenham mais cuidado, protejam-se, lutem, exijam compromisso das autoridades. Impeçam que o mal se sobreponha à virtude. Não permitam que falsas ideias se espalhem. Não acreditem em soluções fáceis, mágicas. Unam-se em torno da vida. Fiquem vigilantes a tudo. O ser humano é, na verdade, uma categoria inferior que se acha, e acredita nisso, superior. Não tenham receio de gritar, de protestar, de clamar por justiça, de enfrentar as adversidades que o próprio viver impõe. Enfim, todos vocês precisam acordar para viver. E deixarem o outro livre para igualmente viver. Importem-se com suas próprias vidas e deixem que cada um cuide da sua própria. Deixem os loucos onde estão. Não lhes deem ouvidos. Tenham atitudes prante a vida. Não sejam negligentes. Assumam-se como pessoas...
Houve um longo silêncio entre os presentes, interrompido por uma implosão em cada túmulo, sugando os corpos , como se fossem bonecos de pano engolidos por um ciclone, em forma de redemoinho. Todos ficaram espantados e reflexivos, antes de retornarem as suas casas.


   
Publicado no livro "Contos de Coronéis (ou) Lobisomens" - Edição Especial - Maio de 2014