Janailton Mick Vitor da Silva
Campina Grande / PB
Das
coisas
As pétalas de chuva caíam devagar
como cascalhos que não mais habitavam a estrada abandonada
pelos sapatos descalços. O mundo se tornava cada vez mais
sombrio como se desistisse de si próprio e doasse ao universo
sua cartola de mágico. Ele havia cedido à esperança
do homem e desejava que as coisas se resolvessem como deveriam
ser resolvidas. Tudo fora entregue. Tudo fora cedido tão
facilmente.
Lágrimas de chuva sobre a terra impura. O calor do solo
frio dormia escondido entre as migalhas de areia que se juntavam
para formar aquilo que os pés pisavam dolorosamente. No
meio do nada, no meio do quarto, no meio da sala. As coisas pareciam
ter mudado.
Mas não se havia passado tanto desde que decidira repousar
seu corpo mole na poltrona surrada debaixo da janela. Janela da
sala, sala da cabana, cabana do mundo. Cabana cujas telhas cochichavam
aos murmúrios doloridos das lágrimas que eram jogadas
do céu que parecia não existir.
Cabana por onde passava a estrada não mais pisada como
antes fora. Estrada dos ex-cascalhos omissos e sumidos por sobre
os quais as gotas insistiam pisar. Mas não fazia diferença
nenhuma, pois ele jazia sentado sobre a poltrona. Dentro da sala.
Perto do abajur. Pisando no tapete que cobria o chão. Encarando
o corpo que se debatia em silêncio.
Já se passara tempo desde que preferira abandonar as coisas,
pois as coisas o haviam abandonado primeiro. Era tempo de inverno,
das coisas gélidas e sombrias que tanto lhe preenchiam
quando a solidão parecia tê-lo abandonado para sempre.
Sua vida agora dependia tão somente do que ele mesmo poderia
conseguir sozinho como sempre o fizera em vida. Decidiu que já
vira um pedaço do espetáculo que acontecia à
sua frente, e permitiu-se sair.
Pés no chão de fora. Pés onde a estrada não
mais era pisada. Árvores altas e tortas e murchas. Esculpidas
pelo vento que as jogava de um canto para outro, arremessava os
galhos, derrubava as folhas, estragava os frutos que caíam
e eram comidos vivos pela terra úmida.
Lá em cima, num céu mais longe e sigiloso, as nuvens
transparentes que traziam à tona o anúncio da cor
do universo lá em cima, lá em baixo, em toda parte.
Tão misterioso, tão mais sombrio do que o próprio
homem que decidira abrir a porta e sair para olhar as coisas que
haviam lhe abandonado.
As mãos que balançavam discretamente contra os ventos
que sopravam silenciosos em busca da imensidão do que é
voar sem ser visto. A camisa de botões com três botões
cujas longas mangas se faziam em mangas curtas. A gola que preenchia
os espaços das costuras e dos pontos e das linhas brancas
que mergulhavam neutras escondendo-se do pescoço e da nuca.
Dos cabelos que pairavam imóveis no couro cabeludo, vencendo
a guerra de se balançar sem poder balançar.
A vida podia ser nobre outra vez dentro das coisas protegidas
do ex-mundo lá de fora, lá de dentro. Aqui dentro
tão severamente guardado às chaves roubadas pelo
tempo que se passara desde que carregara o corpo e o pendurara
na sala.
Ele poderia ter feito ali fora. Ali, debaixo da árvore
torta e corcunda cujo galho maior se impunha na certeza de que
as coisas podiam existir novamente, senão pela falta das
mesmas coisas que poderiam lhe preencher por completo. Faltava
algo, algo talvez não tão necessário, mas
tão necessário ao mesmo tempo!
Poderia ter amarrado a corda no galho alto, mas acessível
às mãos que matavam tão sedutoramente com
seus dedos meticulosos e macios e movediços. Dedos que
seguravam as pernas e a corda e puxavam para cima a natureza humana
que já existira.
Ele poderia ter feito ali fora, mas a proteção da
cabana lhe permitia sentar na poltrona debaixo da janela e perto
do abajur. Olhar ao redor, observar os móveis antigos e
mantidos ainda vivos pelas aranhas que se escondiam por debaixo,
dentro das entranhas dos fios grudentos e congruentes. Perceber
a curvatura retangular dos traços incompreensíveis
do teto. Ver a lâmpada que cuspia no aposento sua luz forçada.
Enxergar melhor o corpo que obrigara o sangue ser expelido por
completo, de volta para o lado de fora, de volta para o que antes
nunca conhecera, de volta para a impossibilidade.
Da impossibilidade do corpo em não ficar no galho da árvore
do lado de fora. Ele estava bem ali dentro e deveria permanecer
ali dentro longe das coisas que lá fora apodreciam mais
rapidamente.
Pois ele fora tão si mesmo que o trabalho tinha sido feito
por completo dentro da cabana, atrás de si, atrás
da porta.
Atrás do mundo.
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