Primeira vez neste site? Então
[clique aqui]
para conhecer um pouco da CBJE
Antologias: atendimento@camarabrasileira.com
Produção de livros: cbje@globo.com
Contato por telefone
Antologias:
(21) 3393 2163
Produção de livros:
(21) 3547 2163
(21) 3186 7547

Janailton Mick Vitor da Silva
Campina Grande / PB

 

Das coisas

As pétalas de chuva caíam devagar como cascalhos que não mais habitavam a estrada abandonada pelos sapatos descalços. O mundo se tornava cada vez mais sombrio como se desistisse de si próprio e doasse ao universo sua cartola de mágico. Ele havia cedido à esperança do homem e desejava que as coisas se resolvessem como deveriam ser resolvidas. Tudo fora entregue. Tudo fora cedido tão facilmente.
Lágrimas de chuva sobre a terra impura. O calor do solo frio dormia escondido entre as migalhas de areia que se juntavam para formar aquilo que os pés pisavam dolorosamente. No meio do nada, no meio do quarto, no meio da sala. As coisas pareciam ter mudado.
Mas não se havia passado tanto desde que decidira repousar seu corpo mole na poltrona surrada debaixo da janela. Janela da sala, sala da cabana, cabana do mundo. Cabana cujas telhas cochichavam aos murmúrios doloridos das lágrimas que eram jogadas do céu que parecia não existir.
Cabana por onde passava a estrada não mais pisada como antes fora. Estrada dos ex-cascalhos omissos e sumidos por sobre os quais as gotas insistiam pisar. Mas não fazia diferença nenhuma, pois ele jazia sentado sobre a poltrona. Dentro da sala. Perto do abajur. Pisando no tapete que cobria o chão. Encarando o corpo que se debatia em silêncio.
Já se passara tempo desde que preferira abandonar as coisas, pois as coisas o haviam abandonado primeiro. Era tempo de inverno, das coisas gélidas e sombrias que tanto lhe preenchiam quando a solidão parecia tê-lo abandonado para sempre.
Sua vida agora dependia tão somente do que ele mesmo poderia conseguir sozinho como sempre o fizera em vida. Decidiu que já vira um pedaço do espetáculo que acontecia à sua frente, e permitiu-se sair.
Pés no chão de fora. Pés onde a estrada não mais era pisada. Árvores altas e tortas e murchas. Esculpidas pelo vento que as jogava de um canto para outro, arremessava os galhos, derrubava as folhas, estragava os frutos que caíam e eram comidos vivos pela terra úmida.
Lá em cima, num céu mais longe e sigiloso, as nuvens transparentes que traziam à tona o anúncio da cor do universo lá em cima, lá em baixo, em toda parte. Tão misterioso, tão mais sombrio do que o próprio homem que decidira abrir a porta e sair para olhar as coisas que haviam lhe abandonado.
As mãos que balançavam discretamente contra os ventos que sopravam silenciosos em busca da imensidão do que é voar sem ser visto. A camisa de botões com três botões cujas longas mangas se faziam em mangas curtas. A gola que preenchia os espaços das costuras e dos pontos e das linhas brancas que mergulhavam neutras escondendo-se do pescoço e da nuca. Dos cabelos que pairavam imóveis no couro cabeludo, vencendo a guerra de se balançar sem poder balançar.
A vida podia ser nobre outra vez dentro das coisas protegidas do ex-mundo lá de fora, lá de dentro. Aqui dentro tão severamente guardado às chaves roubadas pelo tempo que se passara desde que carregara o corpo e o pendurara na sala.
Ele poderia ter feito ali fora. Ali, debaixo da árvore torta e corcunda cujo galho maior se impunha na certeza de que as coisas podiam existir novamente, senão pela falta das mesmas coisas que poderiam lhe preencher por completo. Faltava algo, algo talvez não tão necessário, mas tão necessário ao mesmo tempo!
Poderia ter amarrado a corda no galho alto, mas acessível às mãos que matavam tão sedutoramente com seus dedos meticulosos e macios e movediços. Dedos que seguravam as pernas e a corda e puxavam para cima a natureza humana que já existira.
Ele poderia ter feito ali fora, mas a proteção da cabana lhe permitia sentar na poltrona debaixo da janela e perto do abajur. Olhar ao redor, observar os móveis antigos e mantidos ainda vivos pelas aranhas que se escondiam por debaixo, dentro das entranhas dos fios grudentos e congruentes. Perceber a curvatura retangular dos traços incompreensíveis do teto. Ver a lâmpada que cuspia no aposento sua luz forçada. Enxergar melhor o corpo que obrigara o sangue ser expelido por completo, de volta para o lado de fora, de volta para o que antes nunca conhecera, de volta para a impossibilidade.
Da impossibilidade do corpo em não ficar no galho da árvore do lado de fora. Ele estava bem ali dentro e deveria permanecer ali dentro longe das coisas que lá fora apodreciam mais rapidamente.
Pois ele fora tão si mesmo que o trabalho tinha sido feito por completo dentro da cabana, atrás de si, atrás da porta.
Atrás do mundo.

   
Publicado no livro "Contos de Coronéis (ou) Lobisomens" - Edição Especial - Maio de 2014