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Maria Rita de Miranda
São Sebastião do Paraíso / MG

 

Alma penada

Esta é uma história que remonta tempos em que uma alma ou um espírito, seja como for chamado, causava muito medo. Hoje em dia não assombra mais ninguém, visto que todo fato sobrenatural que não sabemos explicar, é um fato paranormal. E se a ciência explica, por que medo?
Mas, voltemos ao início do século XX, época em que os barões e coronéis viviam em constante conflito íntimo, cada um querendo ser mais rico e poderoso que o outro. Tempo de muita simulação, de culto ao vale o que tem, e ao poder. A classe privilegiada se sentia inatingível e fazia de tudo para permanecer no ápice.
Nossa história conta um pouco da vida e da morte de um destes barões do café, o senhor Emiliano. Este era um sujeito grandalhão que só usava ternos claros, chapéu na cabeça e uma bengala que lhe servia de aparato, apesar de não precisar dela.
Em sua mansão na parte nobre da cidade grande, ele reinava absoluto. Jussara, sua esposa, bem como os dois filhos legítimos Rui e Raul eram-lhe totalmente submissos. Tremiam só de vê-lo apontando sua bengala para o rosto de um deles, como acostumava fazer, quando alguma coisa o desagradava.
Freqüentava lugares de deleite noturno, o que fez com que alguns filhos bastardos lhe fossem apresentados, vez por outra, por uma rapariga querendo dinheiro. Nestas ocasiões, ele esbravejava assustando as pobres moças que desapareciam, e não voltavam mais, de sua presença.
Muito rico que era e esbanjador na bebida, não lhe faltava amigos bajuladores que o acompanhavam de um lugar a outro, sempre concordando com ele, por mais absurdas que fossem as suas prosas.
Tinha também inimigos. Pessoas iguais a ele que sentiam inveja mútua. Querendo ser sempre o melhor se estranhavam nos negócios, na bebedeira e até nas missas dominicais que faziam questão de freqüentar, para enganar a si próprios que eram pessoas do bem, ao colocar nos pés do santo uma mísera espórtula.
Foi um destes companheiros que acabou com a vida de Emiliano. Durante uma prosa sem importância alguma, em que cada um enaltecia a si mesmo, num bar do centro da cidade, já com a cabeça abalada pela bebida, para espanto de todos, o coronel João saca uma arma. Aponta cambaleante para a cabeça de Emiliano e atira, deixando os outros perplexos e apavorados.
O barão tomba devagarzinho. De olhos esbugalhados, sem entender a causa real do disparo, cai no chão duro do bar. Durante alguns minutos não houve manifestação dos presentes. Então o coronel João gritou: - valha-me Deus! O que foi que eu fiz? Saiu apressado do local.
Nunca mais foi o mesmo. Impune ao crime aqui na terra teve um castigo do além. A passos lentos e contínuos sua vida foi se modificando para pior. Primeiro foram seus próprios pensamentos que não lhe dava descanso. Matutava o dia inteiro sobre o crime que praticara. As noites passaram a ser desesperadoras. Custava muito a dormir e quando isto acontecia só tinha pesadelos com Emiliano. Este lhe dizia que logo viria buscá-lo. Ameaçava-o com uma arma de fogo. Ria gargalhando do medo que o coronel demonstrava. João acordava todo molhado de suor, prometendo a si mesmo que não mais dormiria para evitar os sonhos maus.
Depois começou a ver coisas. Bastava se olhar no espelho para ver o rosto de Emiliano rindo, no lugar do seu. Quando ia se sentar numa cadeira, na verdade se sentava no chão dizendo que o morto afastara o assento. Alimentar-se passou a ser um sufoco. Cada alimento levado à boca tinha a consistência das mãos de Emiliano, sem falar que o copo d’água refletia o barão afogado.
O coronel João perdeu o respeito de todos. Os garotos riam dele nas ruas quando o viam caminhar desajeitadamente como um molambo perseguido. Os ditos amigos foram se afastando. A família não mais o tolerava.
João passou a viver um inferno aqui na terra. Seus ouvidos agora só escutavam a voz de Emiliano gracejando, ameaçando, incomodando.
Isolou-se por força maior, tornando-se um farrapo humano. Endoideceu. Passou a caminhar sem destino pelas ruas da cidade e a conversar com alguém que não lhe dava tréguas e que somente ele via: o abominável barão Emiliano.

 


   
Publicado no livro "Contos de Coronéis (ou) Lobisomens" - Edição Especial - Maio de 2014