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Alexandro Marques Morais
Porto Alegre / RS

 

O anjo

O carro rodava silenciosamente pelo asfalto naquela tarde nublada de domingo. Apenas o leve ressonar das crianças e da esposa de Augusto podiam ser ouvidos no interior do veículo. Voltando de uma festa de aniversário, ele agora estava arrependido por ter bebido um pouco de cerveja,bebida que lhe causava certa sonolência. Mal teve tempo de concluir seu pensamento quando sentiu o baque surdo do pneu contra um obstáculo e logo perdeu o controle do carro.
Tudo aconteceu muito rápido. Num instante o carro derrapou na pista e colidiu com uma placa de sinalização. Não houve tempo. Não houve dor. Apenas o lapso vertiginoso entre o choque e a inconsciência. O veículo capotara várias vezes antes de finalmente parar do outro lado da pista,onde os outros motoristas já paravam para prestar socorro.
Augusto agora tentava recobrar a consciência, mas seu corpo não se movia e ele podia ouvir as vozes ao longe. Não eram vozes de desespero ou de pressa. Apenas pequenos sussurros, quase inaudíveis e incompreensíveis. Estaria ainda na estrada? Estaria em um hospital? Procurou distinguir os odores, os sons, mas seus sentidos não o ajudavam.
Acalmou­se e começou a ver os vultos de pessoas distorcidos pela luz tênue que agora conseguia perceber. Tentou lembrar o que havia acontecido, mas estava muito atordoado para saber onde estava e o que havia acontecido. Um dos vultos aproximou­se e ele pode perceber que era um homem idoso, vestido de branco da cabeça aos pés, apoiando­se em uma bela e jovem mulher.
Apesar de seu rosto demonstrar calma e benevolência, Augusto não pode conter o medo e a apreensão por não saber o que ocorrera com ele e sua família. O velho sorriu e disse com uma voz suave e familiar :
-Como vai, Augusto? Acredito que você esteja ávido por respostas, mas temo que, neste
momento, não tenhamos o tempo necessário para lhe explicar o que está acontecendo. Seu corpo ainda luta para sobreviver, por isso serei breve.
Sobreviver? Augusto pensou que loucura seria aquela. Pela primeira vez sentiu que podia articular alguma palavra.
-Quem é você? Que lugar é este? Onde está minha família?As perguntas saíam atabalhoadas e angustiadas. O velho sorriu e pôs a mão em sua testa.-Você precisa se acalmar e entender que está aqui com um propósito. O acidente custou a vidade sua família, mas não precisa custar a sua.
A notícia veio como um soco no estômago e ele não pode conter o desespero e a culpa pela morte de sua família.
- Foi minha culpa. Por que apenas eu deveria viver? Meus filhos tinham a vida toda pela frente!Isto não é justo!
- Não se trata de justiça. Seus filhos e sua esposa estão em lugar maravilhoso, cabe a você decidir se quer encontrá­los novamente.
- O que eu preciso fazer?
- Você retornará a Terra e ajudará pessoas que ainda não estão prontas para morrer. Elas
precisam de alguém que zele por suas vidas e sua segurança.
- Não entendo. Por que eu?
- Você terá a chance de corrigir seus erros como pai e esposo. Você apenas pensa em dinheiro e poder na sua vida terrena. Terá poderes para curar as pessoas, protegê­las de acidentes e demônios que corrompem as almas.
Augusto pensou então na vida que levara até ali. Apenas trabalho, metas, lucro e dinheiro. Não lembrava a última vez que brincara com seus filhos e beijara sua esposa. Agora era tarde demais e não podia voltar no tempo para corrigir seus erros. A proposta daquele homem parecia a única maneira de aliviar a dor e o sofrimento, de fazer algo de útil por alguém e quem sabe, um dia,reencontrar sua família e pedir perdão. Fechou os olhos antes de decidir e finalmente olhou para o velho.
- Eu aceito o desafio. O que eu preciso fazer?
Com um sorriso o velho lhe disse:
- Apenas decida viver, você acordará no hospital, onde seu corpo está agora e cumpra sua tarefa.
Neste momento, Augusto fechou seus olhos e, ao abri­los viu a equipe do hospital tentando reanimá­lo. Para a equipe, foram alguns segundos de luta desesperada para trazê­lo à vida, mas para ele parece que o tempo não passou.
Ficou mais alguns dias no hospital e, após receber alta, lembrou da tarefa que havia acordado quando estava entre a vida e a morte. Como saberia quando agir? O que teria que fazer? A quem ajudar? A resposta veio mais rápido do que esperava. Um homem adentrou o setor de emergência do hospital com os paramédicos tentando reanimá­lo devido a um infarto. Segui­os até a sala onde o homem começou a ser medicado e receber as descargas elétricas do aparelho de reanimação.
Nada acontecia. Ele não reagia. Augusto teve o impulso de segurar a mão do homem mas quase foi expulso da sala pelos médicos. Quando não havia mais esperança, ele pediu para ajudar e todos o acompanharam, segurando as mãos. Ele pousou a mão na testa do homem e pediu­lhe que não desistisse, pois não estava na sua hora ainda e ele precisava ter fé para continuar a viver.
No canto da sala ele vislumbrou rapidamente uma sombra em forma de homem. Seria aquilo os demônios de quem o velho lhe falara? Concentrou­se novamente em ajudar o paciente à beira da morte e após uma espera angustiante, ele começou a reagir. O homem estava salvo. Os médicos e os enfermeiros não perceberam quando Augusto deixou a sala rapidamente,procurando a sombra que havia visto na sala de emergência. Vasculhou os corredores mas nada encontrou. Sentiu uma satisfação enorme por ajudar a salvar uma vida, mas, ao mesmo tempo,apreensão com os perigos que viria a encontrar para salvar vidas. Estaria à altura para tamanha tarefa? Com um sorriso no rosto pensou que, somente o tempo diria.


   
Publicado no livro "Contos de Coronéis (ou) Lobisomens" - Edição Especial - Maio de 2014