Teresa
Cristina Cerqueira de Sousa
Piracuruca / PI
A perna da defunta
Era o mês de maio. Maria Luíza estava
numa reunião e como ainda não havia terminado o
semestre letivo, muitos professores como nós, tinham vários
assuntos pendentes. Um tema que nos chamava a atenção
sempre era se podíamos ou não usar o celular durante
as aulas. Mas como o diretor não havia ainda confirmado
a conclusão a que a o Conselho de Classe tinha chegado,
Maria Luíza atendeu ao celular quando tocou. Pareceu de
início ser algo comum, do cotidiano familiar. Porém,
ela começou a ficar em silêncio, tremeu a voz quando
conseguiu falar e caminhou em direção à porta
da sala. Eu a segui, como proteção, pois pude sentir
que o assunto era grave. Ela colocou o aparelho um pouco afastado
do ouvido e me disse que a avó dela tinha falecido.
Antes de iniciar – numa retrospectiva – e dizer que
fui com minha amiga encomendar o funeral de Dona Rita logo que
passamos pelo portão da escola, respiro fundo em minha
memória para não fugir do cheiro que tem uma velhinha
quando morre.
Todos os seres têm um cheiro quando acabam. Eu tinha da
infância, marcado em olfato, o cheiro de um perfume que
colocaram em uma menina que havia morrido de meningite na minha
vizinhança. As emoções que se desenrolaram
dentro de mim por longo tempo depois daquele dia eram como se
eu não pudesse desgrudar meus sentidos do cheiro de gente
morta. O cheiro, muito forte, deixou-me em perigo a não
chegar perto de velórios.
Mas eu tive meus pensamentos quebrados na casa de Dona Rita. Um
aspecto de quem banhou há pouco e usou flores no banho.
Tudo, desde a roupa que vestiram nela aos calçados simples
de couro cru, fizeram-me descobrir que meu nariz era parte de
minha sensibilidade e sentimentos por quem me tinha tido um carinho
enorme nos vinte anos em que eu frequentei a casa dela. Sim, eu
reconheci o cheiro que Dona Rita tinha todas as tardes, em que
eu a visitava com a neta – minha amiga Maria Luíza.
De volta à história, não pudemos nos demorar
porque gente idosa às vezes não tem muitos amigos
e o corpo fica quase sem ninguém que o vele. Sabíamos
disso. Nosso pensamento era o de chegar depressa em casa e providenciar
café para os poucos amigos que fossem ao velório.
Tinha três filhas, uns sete netos, a vizinha da direita,
uma comadre, em todo o tempo, uns poucos presentes e que eu não
me esqueça de Seu Luís – esposo de uma das
irmãs de Maria Luíza.
Mas o velório seguia já para o horário do
enterro. Ali encontramos um problema: o corpo da velhinha tinha
enrijecido com uma das pernas dobradas. E era preciso fechar o
caixão, o que era impossível com aquele osso curvado.
Foi um instante só. Minha amiga me olhou e disse:
_ Quebrem a perna dela. Os ossos estão fracos, já
não há mais circulação de sangue!
Quem pode saber por que fazemos certas coisas em algumas ocasiões?
Eu estava lá e senti que era preciso tomar uma atitude.
Chamei Seu Luís e segurei no fêmur da perna esquerda
de Dona Rita e ele, num empurrão forte, quebrou o osso
numa facilidade. As pessoas não disseram nada, cada uma
querendo esquecer o que presenciaram. Afora elas, não me
lembro de mais ninguém que saiba desta história.
E sei que a gente tem cada associação de lembranças,
emoções e cheiros que me ficou mesmo foi aquele
perfume de alfazema; que dizia ser Dona Rita uma senhora tão
fresquinha para se abraçar.
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