Carlos
Eugênio Sombra Moreira
Porto Alegre / RS
Flor do sertão
Chinelos largados no rancho. As brasas, ainda aquecidas, é
a prova de que o cangaço esteve há poucas horas
no acampamento. Anita, uma jornalista do Sudeste do país,
não desiste de seu propósito. Ela segue corajosamente
os passos dos cangaceiros. A jornalista pressente que o encontro
com o bando está próximo. O coração
da moça bate no ritmo de seus passos, debaixo de um sol
causticante, com o corpo sapecado do clima seco do sertão
nordestino.
Em algumas horas de caminhada, com os pés já sentindo
o desalento da caatinga, Anita é surpreendida por um velho
cangaceiro. Ele a leva, com os olhos vendados, ao novo acampamento
do bando. O chefe do cangaço – um homem rude, de
voz grossa e olhar severo – questiona a presença
da jovem na região. Ele percebe se tratar de uma forasteira,
devido à linguagem rebuscada e cabelos bem tratados.
O cangaceiro indaga os propósitos que a motivaram sair
de sua terra natal e aventurar-se no sertão. A jovem, de
voz embargada, não encontra palavras para convencê-lo.
Percebendo o nervosismo da moça, o rei do sertão
ordena que ela seja amarrada dentro da cabana. A moça fica
aos cuidados de Violeta – esposa do chefe do cangaço
– uma mulher ríspida.
No cair da noite, Anita expõe as razões que fizera
enfrentar esse desafio. Convence a todos que, sua presença
na região, tem o intuito de mostrar ao país as injustiças
sociais ocorridas no nordeste. Os cangaceiros chegam à
concepção de que a jornalista poderá trazer-lhes
alguns benefícios. Eles eram vistos como transgressores
da lei e assassinos cruéis, uma reportagem relatando as
injustiças vivenciadas pelos sertanejos, certamente mudaria
essa visão, e poderia suscitar em ações benéficas
em prol de sua gente.
A madrugada invade a caatinga. Anita, exausta, dorme ferreamente
numa rede. Entre o sono profundo – pelo cansaço do
corpo –, e a tensão natural provocada pelo medo,
ela tem a sensação de alguém se aproximando.
Com os olhos entreabertos, e o coração atormentado
pela tamanha tensão que sofrera durante o dia, Anita sente
uma mão calejada, acariciando seu rosto e deslizando em
seu corpo. Ao amanhecer, ela acorda com a impressão de
que foi acarinhada enquanto dormia. Mas a cena é tão
distante de sua memória, que ela passa a crer que tudo
não passou de um sonho.
Anita levanta-se e caminha nos arredores do acampamento. Constata
que não tem água para saciar a sede daquela pequena
população – homens, mulheres e crianças
que habitam a mata seca. Os cangaceiros retiram água das
raízes dos imbuzeiros - fruta sagrada do sertão.
Eles chupam os imbus para saciar a fome e a sede – só
não satisfaz os anseios da alma, a busca pela melhoria
de vida de uma gente desprovida de direitos básicos. Anita
também se alimenta de imbus – essa fruta torna-se
o café da manhã de todos aqueles que estavam no
acampamento. Violeta também prepara mandacaru – cacto
nativo do Brasil de porte arbóreo – para cozinhar
e servir no almoço.
A falta de alimentos fica insustentável. Os cangaceiros
passam dias planejando invadir o comércio do povoado mais
próximo. Alguns deles se infiltram no meio do povo, disfarçados
de romeiros, para observar a rotina da comunidade.
Em noites contínuas, Anita tem a mesma sensação:
alguém se aproximando de sua rede, tocando seu corpo com
desejo, acariciando seus cabelos e sua pele suave – apesar
da cor rosada pelo forte sol da caatinga –, beijando levemente
sua boca, afagando o seu rosto e depois se afastando sem esboçar
qualquer barulho. Ela sempre acorda com a incerteza do que realmente
ocorrera – se tudo foi um sonho, ou alguém lhe fizera
carícias enquanto dormia. A dúvida a deixa angustiada.
Enfim, chega o dia da invasão. Os cangaceiros combinam
os últimos detalhes. Eles não permitem que a jornalista
os acompanhe. Mas a jovem chega à cidade com a ajuda de
Violeta.
Os cangaceiros chegam a cavalo, em desfilada. Pegam os comerciantes
de surpresa para não dar-lhes a oportunidade fechar os
estabelecimentos. Cavalgam em disparada pelas ruas, gritando e
disparando tiros para o alto - usam a estratégia de espalhar
o terror, enquanto uma parte do bando saqueiam os armazéns.
Entretanto, nem tudo sai como planejado. Alguns comerciantes reagem
e há troca de tiros.
Em meio a essa situação conflitante, Anita é
atingida. Um cangaceiro presencia o momento, põe a jornalista
na garupa do cavalo e a leva ao acampamento. Violeta fica atormentada
ao ver a jovem chegando ferida e presta os primeiros socorros.
Ao anoitecer, Anita encontra-se febril, à medida que a
escuridão toma conta da mata seca, e a lua nova posiciona-se
no horizonte, encoberta pelas nuvens, a febre se intensifica.
Anita dorme, apesar da inquietação provocada pela
alta temperatura de seu corpo. Ela tem mais uma vez a sensação
de que alguém se aproxima. Por um instante, sente seus
lábios sendo aquecido por um beijo meigo. Permanece de
olhos fechados, mas dessa feita retribui o beijo, enquanto uma
mão acaricia seu sexo, provocando-lhe prazer. A pessoa
se afasta, Anita olha ao longe, apesar da fumaça da lamparina
e do farol quase apagado, ela avista Violeta retornando a outra
cabana.
Na manhã seguinte, Anita acorda no leito de um posto médico,
em uma cidade vizinha ao povoado atacado pelo bando. Ao questionar
sua presença naquele local, a atendente afirma que um romeiro
a deixou ali, para que tivesse os cuidados necessários.
Após alguns dias, ela recebe alta e retorna para o Sudeste
levando a dúvida do que realmente ocorrera, durante as
noites em que ficou arranchada – se tivera os mesmos sonhos
em noites contínuas, ou uma experiência homossexual.
Mas leva a certeza do sofrimento de uma gente que luta por direitos
essenciais a dignidade humana. Assim que chega ao Rio de Janeiro,
a jornalista escreve uma matéria retratando a luta de um
povo que não desiste de sonhar.
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