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Ana Carolina Viana Faria
Belo Horizonte / MG

 

Um sonho OK


Aquela era uma noite de inverno, contudo o frio estava fora do comum. Nunca tinha usado cachecol em toda a minha vida, mas naquele dia era realmente necessário. Foi difícil sair do carro e cruzar a Avenida Ribeiro até o bar da esquina. Só não desisti, pois estava desesperado por uma dose de qualquer bebida que me fizesse esquecer a reunião odiosa que eu tive mais cedo. Sentei ao balcão e pedi logo uma dose dupla para não fazer rodeios. Toda aquela mesmice estava me matando: a mesma rotina, as mesmas pessoas, o mesmo trabalho chato. Eu já com 37 anos nas costas, me sentia um ser humano desprezível e frustrado. Olhando para frente, não conseguia enxergar nada em meu futuro. Sentia-me como se eu tivesse desperdiçado toda a vida com sonhos malucos e investimentos perdidos. Aquele era o mesmo bar de todas as quintas à noite, onde fazia o meu “happy hour”. Mas aquele momento nunca tinha nada de “happy” e me deixava com uma ressaca terrível na manhã seguinte. As mesmas risadas, a mesma música, o mesmo pianista fracassado, o mesmo copo lascado... Mas aquelas mãos finas, aquela pele negra e homogênea, aquelas unhas vermelhas e cumpridas, perfeitamente lixadas e pintadas... Aquilo era novo. E quando olhei à minha frente me deparei com a mulher mais bonita que já tinha visto em toda a minha medíocre existência. Cheguei a perder o ar por um instante e tossir um pouco, engasgando.
- Tudo bem? – perguntou a moça, com uma voz doce e firme ao mesmo tempo.
Fiz que sim com a cabeça, sem coragem de me dirigir a ela. No dia em que me sentia mais fracassado, eu conhecia uma mulher tão interessante. Era mesmo uma falta de sorte... Ou não. Tomei o uísque de uma só vez, fazendo a careta tradicional que vemos nos filmes.
- Mais uma? – ofereceu a moça.
Concordei com um gesto e estendi o copo. Ela encheu mais do que o esperado e arrastou o copo para perto de mim. Eu o peguei, mas ela não soltou e então eu olhei em seus olhos, automaticamente.
- Por que está com essa cara de derrotado? – ela sorria gentilmente, mesmo aquela sendo uma pergunta um tanto quanto atrevida.
- É como me sinto. – respondi enfim.
- Não parece um derrotado. – ela apoiou os antebraços no balcão e tombou o corpo para frente. Parecia querer conversar.
- É porque tive sorte de nascer simpático... – sorri convencido. – Mas por dentro não tenho nada que preste. – suspirei, desfazendo o sorriso.
- Eu duvido.
Lacei-lhe um olhar confuso e ela sorriu ainda mais.
- Está tentando me fazer sentir melhor?
- Estou. – ela afirmou.
O sorriso dela era tão cativante que eu acabei sorrindo involuntariamente.
- Estou conseguindo? – ela virou o corpo tirando o apoio de um dos braços.
- Talvez, se tentar mais um pouco.
Um idiota qualquer pediu uma cerveja e ela se afastou por alguns minutos. Em seguida retornou com uma tigela.
- Isso é sopa? – franzi a testa.
- Sim. Eu que fiz.
- Sopa e uísque? Uma nova combinação?
Ela puxou o uísque da minha mão e jogou dentro da pia.
- Você não precisa encher a cara para sentir-se bem. Coma um pouco, vá para casa e descanse. Sempre há um novo dia. E amanhã o frio não estará tão intenso.
Continuei olhando para ela e balancei a cabeça, incrédulo.
- Você é louca?
- Todos somos.
Ela se afastou novamente. Eu acabei tomando a sopa, que estava muito boa por sinal, enquanto a observava trabalhar. Era uma mulher intrigante.
- E aí?
- Muito gostosa sua sopa. Você já pode casar.
- Está me pedindo? – ela sorriu de um jeito travesso.
- Pedindo o quê? – eu parecia um bobo, sem entender o que ela dizia.
- Está me pedindo em casamento?
Arregalei os olhos e ela soltou uma gargalhada gostosa. Resolvi entrar na brincadeira.
- Você se casaria com um derrotado como eu?
Ela ficou séria e me encarou, como se me analisasse.
- Depende.
- Do quê?
- Você é fiel?
- Totalmente.
- Trata bem a sua mãe?
- Sou o filho que toda mãe gostaria de ter.
- Tem algum vício a não ser o uísque?
- Eu detesto uísque, mas...
- Mas...
- Acho que viciei na sua sopa.
Ela sorriu satisfeita.
- Mais alguma pergunta? – instiguei.
- Sim.
Meu olhar agora já era sedutor e meu coração disparado deixava minha boca seca e meus pensamentos vidrados por um beijo.
- Você beija bem?
Cheguei perto dela e sussurrei:
- Quer experimentar?
Ela desviou os olhos por um instante e eu busquei os lábios dela com os meus, beijando-a de forma intensa. Tudo aquilo era anormal. Talvez fosse apenas um sonho. Aquela mulher, correspondendo ao meu beijo de forma tão apaixonada. Senti suas mãos envolverem meu pescoço e seus dedos perpassarem meus cabelos. Desejei não haver um balcão entre nós e nenhuma daquelas pessoas ao redor.
- Você precisa desse emprego? – perguntei.
- Eu não trabalho aqui.
Me afastei um pouco, surpreso. Ela continuou com suas mãos em meu pescoço, sorrindo ternamente. Ela deu de ombros:
- Sou amiga do dono e sabia que você estaria aqui hoje.
Diante da minha letargia ela continuou.
- Trabalho do outro lado da rua. Um dia vi você lá experimentando um sapato e achei você um gato.
- Não me lembro. Se tivesse visto você antes me lembraria.
- Você não me viu, eu estava no andar de cima ajeitando o depósito, olhei para baixo e lá estava você. Depois te vi de novo, entrando aqui nesse bar e reparei que vinha aqui toda a quinta. Resolvi arriscar. Não podia viver o resto da minha vida sem saber quem era você.
Eu sorri e puxai-a pela cintura por cima do balcão, trazendo-a para mais perto de mim. Nossos corpos se estreitaram.
- Muito prazer, sou o homem mais sortudo do mundo.
- Mas você era um derrotado até alguns minutos atrás! – ironizou ela.
- Isso foi antes de você aparecer.
Eu a beijei novamente, a fim de confirmar que não era um sonho.
- Mas e a sopa?
- O que tem minha sopa?
- Você disse que foi você quem fez.
- E foi. Vi no jornal que hoje faria muito frio e trouxe para você.
Eu sorri balançando a cabeça, incrédulo.
- Vem, vamos sair daqui antes que eu acorde. – disse eu, passando meu braço pelos ombros dela e deixando uma nota de cinquenta no balcão.


   
Poema publicado no livro "Contos Livres" - Edição Especial 2014 - Setembro de 2014