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Cleverson Camelo Silveira
Luziânia / GO

 

A mulher na parede


"Eu era uma criança, esse monstro que os adultos
fabricam com as suas mágoas."
(Jean-Paul Sartre)

Quando Esthela relatou aquelas estórias para seu pai, ele logo percebeu que os efeitos de suas desavenças conjugais com a mãe dela estavam causando fortes impactos emocionais à mente da menina. Uma situação inevitável para qualquer criança de sua idade. Brigas na madrugada, xingamentos, quebra-quebras de móveis..., tudo contribuía irrefutavelmente para que ela se sentisse perturbada. Ao menos foi o que o pai dela pensou.
É..., meu pai não acredita em mim! Ele acha que tudo não passa de consequências da separação com a mamãe. De estorinhas que estou inventando para apagar as tristes lembranças de um passado de união, de minha maravilhosa família. Mas eu sei o que vi e o que vejo quase todos os dias. Não que a destruição da minha família não me importasse, me importava mais do que qualquer outra coisa. Mas depois de um tempo, não eram mais as lembranças dos choros miúdos da mamãe e nem os gritos ásperos e secos do papai que mais me assustavam. No começo até que eram, mas a imagem daquela mulher no meu quarto é o que mais me atormenta.
E não posso negar que fiquei mais triste ainda quando mamãe desapareceu sem deixar recados, nem uma pista se quer. Mas enfim...! No mesmo dia deixamos a casa. O argumento de papai era que ele pretendia reformá-la, pois não queria lembranças da mamãe.
Foi na volta, três semanas depois, que as aparições começaram.
Eu estava num sono profundo quando acordei com um barulho estalando na parede, ao lado do guarda-roupa. A luz estava acesa e achei que meus olhos estavam embaçados. Esfreguei-os, mas aquela mancha, cor de mofo, na parede continuou.
No dia seguinte papai apareceu com uma carta da mamãe. Estranhamente ela havia reaparecido, com uma única frase num pedaço de papel amassado, dizendo que me amava. Somente isso...
A pintura nova na parede já não existia mais. Quando mostrei pra papai ele tratou logo de consertar. A parede ficou nova outra vez, mas por alguns dias apenas.
Acordei outra vez com aquele barulho. Dessa vez procurei encarar a situação, pois pressenti, não compreendo como, que havia algo a descobrir. Hesitei, mas quando dei por mim estava eu diante de um vulto de uma mulher vestida toda de branco. Sua imagem ora era nítida, ora era ofuscada. Parecia um sonho ou algo como uma ilusão confusa... Eu estava trêmula e com muito medo, mas tentei me manter no lugar. Seu vestido longo tremulava, juntamente com o véu que cobria seu rosto. Seus pés não apareciam e suas mãos tinham dedos longos e graciosos. Os pelos do meu corpo estavam todos ouriçados, contudo aproximei-me e estendi a mão direita em sua direção. Era frio e parecia que estava tocando uma espécie de líquido denso.
Despertei com a luz solar que atravessava a janela e ardia dolorosamente sobre meu rosto. Pensei: “Finalmente acordei...!” Mas minha mão estava molhada e gosmenta.
Nesse dia papai havia saído cedo. Deixou um recado na porta da geladeira: “TEM BISCOITOS NO ARMÁRIO. VOLTO LOGO. NÃO SAIA!”
Sozinha na casa, fiquei com medo e passei boa parte da manhã sentada na varanda, apreciando o movimento dos adultos, numa sinfonia louca de idas e vindas. Mas o dia estava tão belo que acabei me esquecendo por um instante de tudo aquilo. A tarde veio e tive que entrar no quarto para apanhar roupas de banho. Foi surpreendida por ela me observando silenciosamente. Não demorou e ela emitiu meu nome, me chamando com uma voz distante e estranhamente suave:
- Esthela..., Esthela...
Pedia para que eu me aproximasse dela. Fiquei parada ao lado da cama e ela continuou me chamando, com a mão estendida. Queria que a tocasse. Como num momento de entorpecimento profundo, fui me aproximando até tocar seus dedos. Estavam gelados. Mas antes que retirasse minha mão, ela me agarrou, fazendo com que eu visse, em mente, várias manchas escuras, nas paredes do meu quarto e debaixo da minha cama. Tentei me soltar com toda minha força, mas era em vão. Até que ela me largou, me levando a cair no chão, ao pé da cama. Foi inevitável, sai correndo e chorando. A casa parecia tremer toda e portas e janelas não abriam mais, enquanto sua voz continuava por todos os cômodos do quarto.
Fiquei escondida na cozinha até ceder ao seu chamado que implorava por minha presença. Aproximei-me outra vez e ela não estava mais lá. Apenas um pedaço de tecido, com manchas escuras, saia por uma fenda na parede. Eu não podia mais fugir... Encorajada por algo que eu não posso compreender, o puxei, mas estava preso. Forcei e acabei descobrindo que se tratava de um dos vestidos da mamãe. Mas havia mais... Então enfiei a mão e acabei derrubando parte da parede, que veio junto com um monte de roupas que logo percebi serem todas da mamãe.
Mas o absurdo é apenas um conceito personificado na mente de um homem que eu não podia mais reconhecer como sendo o meu pai. Na cozinha o surpreendi escrevendo sobre uma folha de papel na mesa de jantar, ao lado de uma arma. Ele me olhou com os olhos lacrimejando e disse:
- É pra você... ELA TE AMA.
E disparou um tiro contra a própria cabeça.
Os peritos disseram que meu pai teve morte instantânea. Já mamãe agonizou por alguns longos minutos, enterrada sob o piso, debaixo de minha cama.

 

   
Poema publicado no livro "Contos Livres" - Edição Especial 2014 - Setembro de 2014