Primeira vez neste site? Então
[clique aqui]
para conhecer um pouco da CBJE
Antologias: atendimento@camarabrasileira.com
Produção de livros: cbje@globo.com
Contato por telefone
Antologias:
(21) 3393 2163
Produção de livros:
(21) 3547 2163
(21) 3186 7547

Flavio Dias Semim
Presidente Prudente / SP

 

Arte na praça

 

     A costumeira caminhada matutina pelas ruas da cidade tinha como itinerário a travessia da praça central. Contornando o chafariz, a marcha trazia como fator principal a habitualidade, sob um sol brilhante ou frio suportável. Sempre observando detalhes, o homem foi surpreendido, naquele dia, por um ruído surdo e confuso, um quase murmúrio e procurou saber a origem, sem sucesso. Não deu importância ao episódio até o dia seguinte quando o fato se repetiu no mesmo local. Atento, incrédulo, ouviu uma voz sumida:
─ Amigo, amigo, até que enfim alguém me atendeu! Olhe para cima, não aguento mais essa situação. Ajude-me, por favor.
Atônito, atendeu o chamado vindo daquela estátua, ali exposta há muitos anos.
─ Eu sou o Raposo. Hoje sou talhado em pedra, mas já fui fundido em bronze. Agradeço por isso, pois detestava dizer que era fundido! Palavra horrível. Não me importo com a situação estática, com a imobilização eterna em que existo, o que me incomoda demais são esses malditos pombos da praça. Veja o que fazem comigo: sujam de excrementos toda a minha roupa da época sem qualquer consideração; passam o dia todo num vai-e-vem sem tréguas; pousam sobre o meu chapéu; usam como plataforma de voo os meus dedos em pala juntados sobre meus olhos; namoram emitindo arrulhos de galanteios intoleráveis e se acasalam sobre meus ombros.  Desrespeitam o passado de um destemido bandeirante, caçador de índios e descobridor de minas de prata procuradas no interior desse imenso Brasil. Socorra-me!
Olhando para os lados furtivamente e ciente de ser aquela uma estátua que nada deveria exprimir ou sentir, certificou-se que a situação era real e não uma “pegadinha” de mau gosto. Desculpou-se com a imagem e afastou-se dizendo que nada poderia fazer, lamentavelmente. Aquela efígie não poderia ter sentimentos, ainda mais tão fúteis comparados aos que tivera em vida, tão heróica e sofrida. Os sulcos na pedra poderiam ter sido produzidos tanto pelo tempo vivido do personagem quanto pelo período de exposição às intempéries, pela escultura.
A sua consciência, porém, não permitiu a indiferença e no dia seguinte lá estava ele, em contato direto com o Raposo, procurando uma solução para o caso. As queixas prosseguiram:
─ Veja amigo, o meu trabuco de boca larga, minha arma de defesa outrora vigorosa no combate aos índios, aos animais ferozes, sustentado pelo talabarte corroído e com o cano voltado para cima todo entupido de penas e piolhos, totalmente inútil. Observe também os canudos de minhas botas, da qual me orgulhava tanto e tê-las calçadas em meus pés sem tirá-las por meses seguidos, andando por esse sertão infinito.
Pensativo, decidiu: sim, era preciso uma solução urgente. Remover a estátua estava fora de propósitos, pois o culto a um ser tão importante é preciso preservar. Resolveu, então, acabar com os pombos. Não, eles não eram seres mensageiros da paz e sim intrusos que incomodavam a eternidade de um herói. Não eram suaves e lindos, agora a seu ver e sim inimigos, espantalhos produzidos pela comunidade que lhes davam a mordomia de uma vida tranquila em plena cidade.
O homem voltou a passos mais lentos fruto de seus anos vividos e num acesso de descontrole emocional, munido de um porrete começou a atacar os pombos com fúria incontrolada. Saltava, gritava e batia com força em todos os que se aproximavam do seu herói. Desvairadamente atingia também a imagem de pedra que, com as pancadas recebidas involuntariamente, começou a se desfigurar. Outros pombos, dos altos das árvores próximas assistiam ao espetáculo e pareciam zombar da situação. As pessoas que se aproximavam procuravam acalmá-lo, porém as bordoadas dadas a esmo feriam também os incautos. Sirenes de viaturas policiais ecoaram pelo ambiente em busca da ocorrência.
Acordou no pronto-socorro municipal, ataduras pelo corpo e manchas de sangue nas vestes. Nos pulsos um par de algemas definia o seu destino. O policial que o escoltava determinou já estar em condições de ser levado para a delegacia de polícia e ser preso por depredação de bem público e crime contra o meio ambiente.

 
 
Conto publicado no livro "Contos Livres" - Abril de 2016