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Lourival da Silva Lopes
União / PI

 

Nos tempos da vazante do rio

 

Nunca neguei minhas origens. Também, quem o faz está negando a si mesmo. Origem. Gênese. Sêmen. Gestação.  Uma relação de causa e efeito que se desdobra, através do tempo, em estilhaço de sentimentos, que se esvaem e se transformam em saudade. Ou lembranças, armazenadas em nossa memória, que ficam formigando na cabeça da gente, se assanhando feito formigueiro de imagens, que vão e voltam. E que, em determinado momento, somos obrigados a ordená-las e transformá-las, materializando-as, em casos, em histórias avulsas, muitas vezes desimportantes para uns e marcantes para outros.
Meu pai era vazanteiro, na beira do rio Parnaíba. Trabalhava, principalmente, com plantação de fumo. Inicialmente no Corrente e, depois, na Barriga d’Areia, onde nasci, no ano de 1958. Éramos pobres. As condições em que vivíamos eram lastimáveis. Uma casa de taipa de chão batido era a nossa morada. Os móveis eram: uma bilheira com dois potes, um coco e alguns copos de alumínio, bem limpinhos e brilhantes, areados com areia do rio; uma penteadeira, com espelho, um pote de brilhantina, dois pentes e um vidro com azeite de mamona para alisar os cabelos das meninas; uma mesa de cedro com seis tamboretes cobertos com couro cru de vaca; e um petisqueiro, uma espécie de armário, no qual se guardavam pratos, colheres, xícaras e outros teréns. E, num canto da parede, sobre uma mesinha de madeira, um rádio AM Philco, grande e que transmitia os programas das rádios mais distantes, inclusive da rádio Globo, do Rio de Janeiro.
Quando o rio enchia, alagava tudo. Tínhamos que sair de casa. A água ficava perto do teto da casa, cujas paredes precisavam ser refeita tão logo a água baixasse. Era um ritual de todo ano. Mas esse fato não era de todo catastrófico, pois era a certeza de que, no verão, haveria fartura e uma boa lavra de fumo, nas vazantes.
Eu me lembro de um fato que aconteceu, naquela época, comigo. A plantação de fumo era importante para a nossa sobrevivência e toda nossa família trabalhava junta. Quando o fumo amadurecia, todos levantávamos de madrugada para quebrá-lo. Quebrar fumo significava tirar as folhas maduras das plantas, colocá-las em um paneiro e levá-las a um estaleiro, onde permaneciam por alguns dias até secarem. Depois de secas, eram riscadas e, a partir daí, passava pelo processo de encordoamento do fumo. A expressão fumo de corda lembra esse processo todo.
Eu era menino. Uns seis anos. Mas já ajudava em tudo: quebrava, riscava e preparava o fumo, ajudando enrolar e desenrolar  em seu processo de curtimento. E tinha uma coisa que eu gostava de comer escondido: barro. Achava uma delícia. Era o barro que ficava por baixo dos torrões de argila seca. Era barro gostoso. Todo dia, cedinho, saía, quase agachado, por entre os pés de fumo, à procura do barro. E, quando percebia que não havia ninguém por perto, me sentava no chão e comia à vontade.
Passado algum tempo, meu pai percebeu algo estranho em mim.
- Biná, tu num tá achando que a barriga desse menino tá grande, não? Tô achando ele muito amarelo.
- Ora, Antônio, deve ser lombriga. Impaludismo num é, porque, se fosse, já tinha morrido.
Meu pai estava desconfiado. E resolveu me vigiar, sem que eu percebesse. Num vacilo, certo dia, quando eu achava que ninguém estava me vendo, ao pôr o pedaço de barro na minha boca, senti uma mão firme e forte segurar meu braço.
- Te peguei, moleque. Tu tá comendo barro. Então é verdade, tu tá cheio de lombriga.
De fato, era muita lombriga. Minha mãe já sabia o remédio de cor, pois era uma doença muito comum, naquela região ribeirinha.
- Vai na farmácia, homi,  e compra um vidro de Uvilon.
Tomei, era um bebida de um doce enjoado. Quase me acabo de botar lombriga. Era um santo remédio. Escapei fedendo, como se dizia por lá.

 


 
 
Conto publicado no livro "Contos Livres" - Abril de 2016