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Wagner Dias de Souza
Rio de Janeiro / RJ

 

Um novo dia para Ozório

      Sexta-feira, 23 de setembro de 1977. Amanhece mais um dia na rotineira vida de Ozório. Ele se levanta, se banha, se barbeia, toma café, escova os dentes, se arruma e sai para a labuta. Chega ao trabalho e cumprimenta seus pares:
  - Bom dia, pessoal!
  Estranha o fato de ninguém o responder como de costume. Mas o corre-corre daquela repartição o faz não ligar muito para esse detalhe. Senta-se à sua mesa e inicia suas atividades burocráticas.
  Num dado momento, Leocádia, sua colega, estranha a ausência do companheiro:
  - O que terá acontecido com o Ozório? Ele nunca se atrasa.
  - Realmente - responde Juarez, seu chefe. Vamos dar mais um tempo. Tão logo termine de despachar esses documentos, tentarei um contato com ele.
  Sem entender muito bem, Ozório comenta:
  - Mas já estou aqui há um tempão! Isso é alguma pegadinha? - Ninguém o responde.
  Do nada, surge na repartição um homem alto, calvo, esbelto, elegante, trajando um bem cortado terno cinza:
  - Bom dia, Ozório!
  - Bom dia! Como entrou aqui?
  - Pela porta.
  - Sim, mas não é permitido entrada de pessoas estranhas ao serviço. E depois, eu não me lembro de conhecê-lo.
  - Falei para a recepcionista que você é filho de um grande amigo e que precisava muito lhe falar. Ah, esqueci de me apresentar. Sou Honório, a seu dispor.
  - Mas o meu pai já morreu. E não me recordo de tê-lo visto lá em casa entre seus convidados.
  - Certamente eu já estive lá.  Provavelmente não se lembra de mim... Ou simplesmente não tenha me visto mesmo.
  - Humpf! Mas que história é essa de estar a minha disposição? Não estou precisando de empregado. Além do mais, tenho que continuar o meu trabalho, senão serei advertido pelo meu chefe.
  - Garanto que ele não se importunará com a minha presença. E não vim me oferecer para trabalhar aqui. Vim lhe trazer uma informação importante.
  - Como assim? Por acaso ganhei na loteria? Mas eu nem jogo! Já sei! Receberei uma herança de um parente distante que eu não conheço.  
  - Você não percebeu nada de diferente hoje ao acordar, Ozório?
  - Não. Sempre faço tudo igual. Tão rotineiro, que já ficou automático.
  - Mas hoje você chegou atrasado, o que não é de seu costume.
  - É. Realmente cheguei atrasado. Ih! Será que foi por isso que ninguém respondeu ao meu bom dia?
  - Não creio. Mas por que chegou atrasado?
  - Aconteceu algo estranho. Eu fazia sinal e o ônibus não parava. Só consegui entrar num coletivo quando outro passageiro fez sinal. Entrei junto com ele. É fato também que o trocador não cobrou a minha passagem. Parece que estava distraído. Cumprimentei-o, mas ele não me respondeu. Fez cara de paisagem...
  - E como está o seu coração?
  - Bem... Terminei um longo relacionamento com uma namorada. Fiquei triste. Mas já passou.
  - Não, não me refiro ao campo afetivo, mas ao seu estado clínico.
  - Está ótimo!  - contesta um já apreensivo Ozório.
  - Mas por que você está me fazendo tanta pergunta?  É algum psicólogo? Repórter disfarçado? O que quer de mim?
  - Estou quase chegando lá.
  - Então seja breve, que tenho muitos afazeres.
  - Você se olhou no espelho hoje?
  - Ah, essa não!!! Eu sei que não sou bonito...
  - Não, não falo de beleza. Pergunto se conseguiu se enxergar enquanto fazia a barba?
  - Mas é claro que sim!
  - Então vá ao banheiro, lave o seu rosto e depois se olhe no espelho.
  - O quê? A minha cara tá suja?
  - Não, não está.
  - Eu hein! Tudo bem. Não deveria, mas eu vou. Não sei porque, mas esse teu jeitinho engomado passa seriedade, a ponto de eu concordar com essa ideia estapafúrdia.
   Segundos depois, volta Ozório assustado:
    - Não consigo abrir a torneira. É como se ela fugisse das minhas mãos. Também não vejo minha cara no espelho. Que brincadeira é essa?
   - Não é brincadeira. Você agora vive um novo estágio.
   - Que conversa é essa? Olha, quer saber? Esgotou o seu tempo. Passa amanhã. Meu chef... Ué, cadê todo mundo?
   - Foram para sua casa.
   - Como para a minha casa? Estou aqui.
   - Vamos até lá e logo entenderá.
    Já em sua residência, Ozório vê seu corpo deitado na cama, um médico o examinando e seus companheiros observando.
   - Ei! Como posso estar ali, se também estou aqui?
   - Você sofreu um infarto enquanto dormia. Sua diarista, ao chegar pela manhã, percebeu que você ainda não havia se levantado. Ao tentar lhe despertar, notou que você não respirava e imediatamente providenciou socorro.  
   - Quer dizer então que...
   - Exatamente!
   - Mas não sinto nada no coração. Além do mais, hoje pela manhã fiz tudo normalmente...
   - Os teus hábitos rotineiros o fizeram crer que estava tudo normal. Mas a realidade é que ninguém aqui, a não ser eu, consegue te enxergar.
   - Então foi por isso que eu fazia sinal e o ônibus não parava, que o trocador não cobrou a minha passagem e ficou com cara de paisagem...
   - Perfeitamente!
    Durante o velório, ele assiste seus amigos, irmãos, vizinhos e comenta:
    - Somente 34 anos. Toda uma vida ainda pela frente. Um bom emprego, casa, amigos... Não poderei mais usufruir essas conquistas. Por que agora?
   - Meu caro, são coisas inevitáveis da vida. Hoje para ti raia um novo dia.  Para uns acontece cedo, para outros mais tarde... O importante é que você está aqui, firme e forte, observando o quanto é querido por aqueles que estão a te homenagear.
   - Não sabia que eu era tão querido assim!  Então era essa a informação que você tinha pra me dar?
   - Sim! Essa é a minha função.
   - Você é de fato amigo do meu pai?
   - Somos grandes e velhos amigos.
   - Onde ele está agora?
   - Trabalhando em um grande projeto.
   - Como sempre! Não perde esse hábito - diz sorrindo um já mais tranquilo Ozório.
   - E quando vou poder vê-lo?
   - Em breve.
   - Mas, mudando de assunto, me diga: vou poder ficar na beca assim que nem você?
   - Mas é claro, meu nobre! E o melhor: de graça. - Ambos caem na gargalhada.
   - Para onde nos vamos agora?
   - Para a sua nova casa. Tem gente boa te esperando lá.
   - Quem?
   - Calma! É surpresa.

 

 

 

   
Publicado no livro "Contos Fantásticos" - Edição Especial - Maio de 2015