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Lourival da Silva Lopes
União / PI

 

As cartas não estão à mesa

A música que eu ouvia no carro, quando retornava da capital à minha cidade, fez-me lembrar de um episódio muito constrangedor da minha vida. Há coisas que acontecem conosco que gostaríamos de esquecer. Mas, de repente, o fato me surge, como se fosse ontem.
Sou representante comercial. Viajo muito, por várias cidades. Casei muito jovem. Conheci uma garota muito bonita que morava em uma dessas cidades por onde eu andava. Começamos a namorar. Depois de um mês, achei que havia encontrado a mulher da minha vida. Eu com vinte e dois anos e ela com dezoito. Trouxe-a para minha cidade. Já havia arrumado uma casa, com mobília e tudo. Meus pais foram contra. Diziam que eu era muito moço para o casamento. Na verdade, não foram muito com a cara de Helena. Esse era o nome dela.
- É muito sonsa.
Eu me sentia ofendido. Até me afastei da casa de meus pais, porque toda vez que eu chegava lá, a ladainha era a mesma.
- Você perdeu o juízo! Essa menina é muito nova. Olha o jeito dela. Parece uma menina. Fica o dia toda brincando com as meninas do bairro.
Às vezes, dava vontade de botar as mãos no ouvido. Não queria ouvir nada. Não gostamos que falem mal das pessoas que amamos.
Meu pai era professor do antigo ginásio da cidade. De português. Gostava de Machado de Assis. Em sua biblioteca havia uma coleção completa de sua obra. Por causa dessa paixão pelo “bruxo do Cosme Velho”, colocou meu nome de Vilela, um dos personagens de A Cartomante.
- Esse nome é digno de você. Vilela defendeu a sua honra. – Disse-me certa vez meu pai, quando lhe perguntei o porquê do nome.
Por causa disso, li o conto. Não achei muita graça. Traição e morte, ambos desnecessários.
O tempo passou. Já fazia três anos de casamento e muito namoro. Quando eu chegava a casa, era recebido com carinho, beijos e abraços. Namoro perfeito. Vinte e um anos a tornavam muito mais bela e atraente.
- Como tua mulher é bonita! Causa inveja em todo o mundo. – Dizia-me um primo com o qual gostava de tomar cerveja no final de semana. Era meu melhor amigo.
- Tu não tem ciúme?
- Ciúme, eu? Mulher não é objeto de estima pelo qual sentimos ciúme.
- Rapaz, se fosse minha mulher, eu morria de ciúme. Ela é muito bonita.
- Temos uma boa relação. De confiança um no outro.
Esse meu primo se chamava Camilo. Frequentava diariamente minha casa, até na minha ausência.
- Camilo me fez companhia a semana toda.
Éramos primos e muito amigos. Eu tinha absoluta confiança nele.
Um dia, porém, recebo uma mensagem no celular. Dizia assim: “sua casa é muito visitada à noite por Camilo”. Era uma mensagem quase anônima. Ficava apenas o registro do número do celular. Mas quando eu ligava, a pessoa que atendia soltava gargalhadas. As mensagens se intensificavam, e as gargalhadas também.
Foi um mês intenso de mensagens e gargalhadas. Confesso que aquilo estava me incomodando. Sempre ficava fora de casa de segunda a quinta. Retornava apenas na sexta à noite.
Depois de muito meditar sobre aquilo, pensei:
- Vou tirar essa história a limpo.
Segunda-feira:
- Helena, minha querida, vou visitar as cidades do sul do estado. Mas na sexta-feira estarei de volta.
Abraçou-me forte e me deu um beijo demorado.
- Deus lhe acompanhe, querido.
Na quarta-feira, recebi outra mensagem: “vc é um cego”. Eram vinte e uma horas. Eu já estava no hotel e conferia umas vendas. Decidi:
- Vou tirar isso a limpo, agora.
Eu não havia viajado para o sul do estado. Estava em Teresina. Joguei minha sacola dentro do carro por cima de uns papéis da empresa que eu trabalhava. Não perdi a calma. Mas, enquanto viajava, ouvi uma música em francês: “Comme d’habitude”, de Claude François. Uma música linda. De tanto repetir “comme d’habitude”, viajei nas páginas de Machado de Assis, pensando em meu pai. “Teu nome é uma homenagem ao personagem Vilela, do conto A Cartomante, que lavou a própria honra, matando os traidores, Rita e Camilo”. Naquele momento, pensei na cena final do conto: Camilo desconfiado, ao entrar na casa de Vilela e o corpo de Rita estirado no chão, ensanguentado. Foram sessenta quilômetros longos e uma ideia na cabeça.
Para ser uma surpresa para Helena, deixei o carro a uns quinhentos metros de minha casa. Eram vinte e duas horas. A cabeça fervilhando em pensamento, enquanto caminhava:
- Se for traição, é porque nossa relação é falsa. Mas, dizem, todas as relações são falsas, ou têm um pouquinho de falsidade. Quando, porém, não há posse, não pode haver traição.
Eu sempre andava com a minha chave. Cheguei. Ufa!!! Abri a porta cuidadosamente. Entrei, pé ante pé, para não espantar. Abri a porta do quarto que estava apenas encostada. Acendi a lâmpada, mas Helena dormia tão pesado que não percebeu. Ufa!!! Um alívio tomou conta de mim, naquele instante. Fiquei observando a sua beleza. Até dormindo é bela, pensei.
- Como as pessoas são maldosas! – Pensei.
O que aconteceu depois que ela acordou, não posso contar.

   
Publicado no livro "Contos Fantásticos" - Edição Especial - Maio de 2015