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Ediloy A. C. Ferraro
São Paulo / SP

 

Hinos & lendas

               

Postados em filas indianas, camisas brancas, calças azuis marinho, perfilados, atentos aos gestos bizarros da professora de música, figura curiosa, esquálida, alta, de nariz adunco e expressões teatrais, entoava-se a canção coletiva. O sol da tarde ardia nos rostos dos alunos, cantando em uníssonas vozes desafinadas, que iam ganhando corpo, virando um coro. Rotinas de entrada, os hinos pátrios executados.
 Aquela maestrina improvisada, esbelta e feia mestra, com uma varinha feito uma batuta, harmonizava a cantoria. Resignada e esforçada, tentando tirar virtuoses de vozes desencontradas, era motivo de escárnios, pilhérias e gozações. Soubesse ela os comentários silenciosos que se ouvia entre a petizada, talvez abdicasse de suas tentativas infrutíferas.
Solene, cerimoniosa a subida ao mastro, a bandeira levemente ascendia, escolhido a dedo aquele que puxaria o cordão, em postura de respeito, no vagar da canção entoada. Lábaro venerada, flanava altaneira, findo estava o breve espetáculo. O balouçar no alto, impulsionada ao vento,  imprimia uma certa veneração àquele pano retangular verde e amarelo, na faixa branca, com suas estrelas no fundo azul celeste, ostentando as palavras Ordem e Progresso na faixa alva.
Todos iam para as suas salas de aulas, nos estribilhos dos hinos, ainda presentes aos ouvidos, os questionamentos infantis me acompanhavam, tantas palavras, pronúncias raras, o que seria ?
Pouco se entendia, acompanhava-se, o ritmo enternecia. Em versos dizia de rios caudalosos e imensas florestas, estranho aquele mundo, para um petiz interiorano. Cidade pequena, parcas lagoas e riachos singelos, como imaginar imensos mares e grandes rios ? De que mundo falavam aquelas letras, entoadas no coletivo, com tantas mesuras e considerações ?
Um povo heroico, beligerante, em grandes façanhas, cantares de guerras, tão distante do povo conhecido, simplória gente com quem convivia. Jamais teriam participado de nada ousado, além de suas rotinas pacatas e previsíveis. De que gente, afinal, tratavam ? E por que os obrigavam ao canto, embora não fosse desagradável, mas uma farra gostosa, ver a magrela com aquela vara gesticulando, imperdível! Além do cerimonial da bandeira, lindo!
Falavam em morte, caso a pátria fosse aviltada, invadida, como diferia a narrativa da placidez dos dias vivenciados, apenas valia a pena a canção que emocionava, cantada aos trancos, mal balbuciadas palavras ininteligíveis, cumprindo um ritual estranho, sem explicações. Com que fleuma se postavam os demais professores, contritos, mãos ao peito,  solenes e sóbrios, nos acompanhando naquelas execuções musicais.
Como estórias e lendas, cantava acompanhando os demais, repetindo como a um mantra, mesmo não entendendo a letra, embalado em outros sonhos, representando, ou entendendo ao meu modo, que já não me lembro qual seria, alheado e desconfiado.  Às crianças cabiam a obediência, aos adultos  o respeito de condutores da educação. Assim, como mandavam, cumpria-se. Divertia-se com tudo, tal é a inocência dos primeiros anos.
Contudo, no silêncio dos questionamentos, repletos de dúvidas, não compreendia os fatos, imitava os demais, que por sua vez também não entendiam nada. Qual a procedência daquele povo enaltecido nas canções, com certeza seriam estrangeiros, com usos e costumes diversos, então, por que cantar aquilo ? Perguntas que o tempo encarregou-se de esclarecer, mas naqueles momentos eram eternas interrogações para o restrito universo de uma criança.  Caraminholas na mente, ainda infantil a não atinar com conceitos.
Como papagaio repetia, tantas estrofes indecifráveis no parco vocabulário de que dispunha, restavam as melodias que encantavam, lembrando os louros da Independência, da Bandeira e seus simbolismos enaltecidos, a Proclamação da República, um brado retumbante às margens do riacho do Ipiranga, emocionava o coro desafinado, inocentes falando em tantas bravuras.
Imagens revividas ao ouvir, ainda nos dias atuais, o entoar disciplinado, como uma oração, que nos chegam aos ouvidos dando-nos um sentido coletivo, pátrio, emocionante...

 

 

 
 
Conto publicado no livro "Contos Fantásticos - Edição 2016" - Setembro de 2016