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Francisco das Chagas Dias
São Luís / MA

 

A máscara da dor

Kairo saiu batendo a porta com força. Ele foi tomado por uma revolta enorme contra tudo e todos. De repente ele se sentiu só no mundo, como se ele fosse um marciano perdido em Vênus. Não tinha como mudar o panorama, ele se sentia mal com toda aquela. Não havia culpado para culpar, não havia nem a própria culpa. Acreditava que não havia nem acusações, não havia o que perdoar. O que havia era uma vontade gigante de ser feliz como todo ser humano queria, ele pensava enquanto caminhava no meio da noite. Afinal o sentido davida não estava unicamente no fato de ser feliz, ou pelo menos tentar, já que a felicidade, às vezes, parecia nada mais que uma linda utopia. Então ele deveria em vez ser destratado pela vida, em vez de ser desprezado pela mãe e menosprezado pelos amigos, deveria era ser ovacionado. Tudo para ele seria muito mais dificultoso, ele tinha plena consciência disso agora e isso o deixava transtornado. E como enfrentar isso? Ser forte e obstinado? O fato que mais pesava era que a pessoa que tinha por obrigação lhe dar apoio, lhe virou as costas. E essa certeza cortava o seu coração juvenil.
Kairo caminhava pela cidade desnorteado. Ia e vinha sem rumo. Sem destino. Sem discernimento de tempo e espaço. Via as figuras da noite nas esquinas: bêbados tropeçando, travestis, prostitutas, casais, vagabundos, mendigos, tipos suspeitos, cães... ele de alguma forma se via em todos eles. Isso o assustava de certo modo, essa incerteza do ia acontecer na sua vida era petrificante, então ele correu tentando fugir daqueles vultos, contudo queria de fato era fugir de si mesmo.
Depois de andar muito e se aborrecer, ele volta para casa exausto e cheio de dúvidas, porém com uma decisão. Ele abre a porta evitando ao máximo fazer barulho. Embora não quisesse partir e consciente de que não era a melhor opção, Kairo decidir ir sim. Desde que seu pai abandonara a família, ele ficara sendo o apoio da mãe, o companheiro de todas as horas, o braço direito. Ele era o seu porto seguro, o consolo, o amigo e confidente, talvez por ser mais velho e mais sensível e equilibrado dos cinco filhos.
E de repente não era nada mais, nem mesmo parecia ser filho, simplesmente por que ele revelara algo que por mais que ele próprio lutasse fazia parte de sua essência. Ele nascera assim, como nasceu com os olhos verdes, a pele branca, o cabelo loiro, o nariz pequeno, os lábios finos. Ele não escolhera, tinha sido escolhido, como lutar contra algo que você não escolhe, que lhe dão sem perguntar se você quer. Ninguém escolhe ser pobre, rico, negro, branco, alto, baixo, gordo, magro, homem, mulher, feio, bonito, ter um, dois ou dez irmãos, nem escolhe o continente que vai nascer, a nacionalidade, a língua e muito menos se é da família X ou Y. Você simplesmente nasce e ponto.
Ele encara esse triste realidade entre lágrimas e colocando suas poucas roupas na mochila. Foi um ano de tormento, mas Kairo aguentou, tudo para terminar o ensino médio e assim pode partir já levando seu certificado, assim ficaria mais fácil arranjar emprego onde chegasse. Após parar, enxugar as lágrimas, se refazer e já ter fechado a mochila ele pega uma folha de papel e uma caneta rabisca algumas coisas rapidamente e coloca na sua gaveta de roupas. Em seguida olha para os irmãos nas duas beliches, passa a mão no rosto dos três, pega um porta-retratos em cima da cômoda e sai pé ante pé. Kairo fecha a porta emocionado, coloca a chave debaixo pela fresta que ficava entre o chão e a porta e empurra, em seguida desce as escadas. A dor ainda era maior por querer ir, por saber ou melhor ter certeza que não voltaria mais e por não querer também ficar sozinho, desprotegido pelo mundo. Mas seria assim para sempre ele pressentia. Ele sozinho e como companhia teria apenas a sua incompreendida sexualidade. Isso seria algo que ele como tantas outras pessoas na sua curta existência de vida não teve opção. E como pedir compreensão do mundo e das pessoas, se sua própria mãe o rejeitara. Kairo jamais entenderia aquela atitude preconceituosa de alguém que tinha um contexto de amor envolvendo toda a sua figura social e histórica.
Meio assustado por estar nas ruas àquelas horas, Kairo corre quando ver um mototaxista passar. Ele troca meia dúzia de palavras e vai direto para rodoviária. Ao chegar lá vai ao guichê e pergunta qual o horário da saída do próximo ônibus. A atendente contra-argumenta para onde. Ele lacônico responde que não interessava o lugar e sim a hora da saída.
A mulher acha estranho, no entanto, efetua a venda após pedir o documento de identidade. Ele só queria saber o lugar quando chegasse lá. E assim às duas da manhã Kairo parte desolado, de coração partido e debulhando-se em lágrimas pelo que deixava, pelo que levaria e pelo que enfrentaria adiante e eternamente. Essa seria uma espécie de máscara da dor que usaria sempre. Estranhamente ele já sentado perto da janela só conseguia lembrar com nitidez da última frase que seu pai falara antes de ir embora para nunca mais voltar. Era uma tarde chuvosa de abril, Kairo tinha voltado mais cedo da escola e quando entrou em casa o pai ia saindo já com uma bolsa de viagem na mão. Ele ficou estático com a cena somente arregalara os olhos, enquanto o pai ficara pálido e ao encarar os olhos do filho disse pausadamente: “nem sempre é possível ficar perto de quem amamos”. Naquele instante de partida como a do pai, Kairo sabia que essa frase o acompanharia dali para frente até o fim de seus dias. Essa lição ensinada de maneira nada didática serviria, ele bem sabia, para sua vida toda. É nem todo objeto tem o reflexo esperado ou quando pior, além de diferente do real ainda causa um susto aniquilador.
E assim o ônibus partiu levando Kairo cheio de esperança de que nesse lugar onde o destino iria levá-lo ele pudesse finalmente voltar a sonhar com a felicidade, ter tranquilidade e usufruir do bem-estar que todos precisam para viver e poder afinal finalmente alcançar a tão imprescindível paz de espírito.

   
Publicado no livro "Contos de Outono" - Edição Especial - Junho de 2015