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Jorge Braga da Silva
Peruíbe / SP

 

Tipo assim

 No escritório onde trabalha todos o chamam Ted “Tipo Assim”. Ted é o nome, o resto é apelido. É um nome simpático e pouco comum por aqui. Já o apelido é curioso, talvez até meio estranho, obra dos sacanas da firma. Mas com certeza, mais estranho que o apelido será a guinada no destino de Ted, em poucos instantes.
São Paulo, agora.
Imagine sexta-feira à tarde na Avenida Paulista.
O mundo sai do serviço e volta para casa. Ted Tipo Assim e sua moto nervosa, no meio daquele trânsito infernal. Buzinas irritadas não se calam. Motoqueiros estropiam-se nos corredores que imaginam entre os carros. Cada fera tem seu território. O dos pedestres, as calçadas e faixas. O dos carros, o asfalto da avenida.
Ted acelera. Aproxima-se de um cruzamento que conhece nos detalhes, nas manhas do trânsito.  Pensa em curtir o fim de semana. Ângulos confusos nos semáforos amontoados da esquina. Dois dias de cerveja e futebol na TV, longe do maldito escritório. Ted avança, não reduz a velocidade. “Está verde pra mim? ” – Uma dúvida fugaz nos críticos poucos metros antes da faixa de pedestres. “E a gasolina, vai dar?” - Um milésimo de segundo conferindo o painel da moto. Borrões de cidade, carros e gente passam velozes. Ele passa pelo cruzamento.
Foi quando Ted percebeu algo assustador.
Não é mais a Avenida Paulista. A cidade, irreconhecível, como se a visse pela primeira vez na vida. A cidade transformou-se em outra. Ted totalmente desorientado.
No escritório, quando a pressão por resultados espreme a gente até quase o surto psicótico, ele costuma fantasiar que vive em outro mundo onde o trânsito flui leve e ininterrupto. Não há semáforos nem cruzamentos. Nada de patrão nem infinitos relatórios. Não há barulho de buzinas impacientes. “A gente anda feliz e despreocupada pelas ruas”. O ar é límpido, fresco e agradável.
Nos banheiros da firma, o universo onde se escondem nossos sonhos.
Voltando ao presente, Ted Tipo Assim, talvez diante do mundo alienígena sonhado no banheiro, sem saber que direção tomar. Ele estaciona a moto e fica tentando entender a situação. Seu olhar percorre o que seria a Paulista. “Acabei de passar pela Gazeta, mas onde está?”. O cenário é de outro mundo. Ruas, alamedas e avenidas dos mais estranhos nomes. Tudo é desconhecido. A luz suave, a paz, as pessoas, a grandeza dos espaços. “Cruzei um portal para outra dimensão e entrei noutro mundo?” – Ted se pergunta.
Pela calçada vem uma garota olhando a sua volta. Parecia meio perdida, como ele. Ted a interpela enquanto retira o capacete.
— Moça, por favor, você pode, tipo assim, me dar uma informação?
Como se fosse um cãozinho perdido ela olha para Ted e responde:
— Desculpe, eu não sou daqui.
— Ah, tipo assim, eu também não.
— Você veio de onde? - Ela pergunta.
— De onde eu vim? Bem, é meio estranho de dizer, mas acho que, tipo assim, de São Paulo.
— Coincidência! Eu também sou de lá. Meu nome é Brizza e o seu?
Ela pergunta enquanto continua passeando o olhar de quem procura alguém ou algum lugar.
— Meu nome é Ted.
De repente havia um grupo de pessoas com eles. Brizza recuou assustada, mas o Grupo é muito simpático e atencioso. Ted estranhou aquele modo súbito deles aparecerem, mas aproveita para pedir-lhes informações.
— Pessoal, tipo assim, que cidade é esta?
Em coro o Grupo responde:
— Aqui é Perfeitópolis. Podemos ajudar?
— Perfeitópolis? É uma pegadinha? Se bem que não parece. Esta cidade tão bonita, organizada e limpa. Faz jus ao nome. Tem uns detalhes que até parece que foi toda projetada e construída pela mesma pessoa. Tudo funciona e todos são tão gentis! - Diz Brizza.
O Grupo responde em coro novamente:
— Não é pegadinha. Nossa cidade é perfeita mesmo. Podemos ajudar?
— Ah, sim, Perfei… tópolis! Sabe, tipo assim, eu me sinto como um desses personagens de histórias de fantasia que cai num buraco ou atravessa um portal e, tipo assim, vai parar em outro mundo.
Depois de conversarem, Brizza e Ted acompanham o Grupo até uma instituição onde ficam hospedados. Por algum tempo, são ouvidos e orientados por vários profissionais.
Mas onde fica essa Perfeitópolis? Detalhe curioso, nunca lembraram de perguntar. Ted continua sem saber como chegou àquele paraíso.
Mas naquela paz isso importa? Passam o tempo todo juntos, conversam, riem. Tudo fica normal para Ted. Ele curte a atenção de Brizza. Meiga e suave.
Felizes, passou a ansiedade de voltarem à antiga vida. Até a última reunião com o Grupo. Uma luminosidade surge do nada. Através dela irrompe um vulto. Do vulto surge uma mulher. Ela aproxima-se de Ted em silêncio.
— Mãe!?
Ele exclama estupefato. Sua mãe falecera há vários anos. Mas a aparição fica em silêncio. Sua presença anuncia o retrocesso indesejado. Perfeitópolis some. Só São Paulo existe. Metamorfose das pessoas e da cidade. É doloroso, mas Ted testemunha o sonho que se apaga e o retorno da realidade.
E tanto tudo se transforma que o mundo volta ao lugar de antes. O tempo tinha parado, mas agora está de volta.
Consegue ver Ted estendido lá no chão, no meio da Paulista? Dá para ver o sangue? Ouve as feras rugindo sobre suas patas de borracha? O ruído irado de buzinas e motores, os passos curiosos, mas indiferentes?
Eu vejo a correria insana, vejo luzes vermelhas piscando. Eu vejo sangue.
E Ted vê o próprio corpo torcido, grotesco, sobre o asfalto da mesma avenida, no fim de tarde que nunca foi outro. Sua moto caída no asfalto. Despedaçada, a fera de aço e rodas sangra o líquido volátil.
Expressão neutra de profissional, um policial informa o acidente de trânsito.
— Positivo, dois mortos. Os nomes são Ted Sampaio, autor e condutor da moto, e Brizza do Prado, vítima, ao atravessar a faixa de pedestres...
Chocado, Ted viu o corpo de Brizza. O cenário conta a história: Brizza na faixa de pedestres, a moto atravessa no vermelho. O choque e as mortes. Mas omite o encontro que houve em Perfeitópolis. Ou será que nunca houve?
Antes de partir deste mundo, Ted lamenta, quer perdão, mas suas últimas palavras vacilantes foram:
— Tipo... assim...

   
Publicado no livro "Contos de Outono" - Edição Especial - Junho de 2015