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Maria Rita de Miranda
São Sebastião do Paraíso / MG

 

Hipocondria

Lentamente e com prazer ela abre o armarinho do banheiro. Os frascos abarrotam as pequenas prateleiras. Um sorriso de satisfação abre a face de Alice, pois esteticamente está tudo perfeito: os frascos enfileirados por ordem de tamanho. Outras vezes já foram arrumados em ordem alfabética. Aquilo a incomodava. Fácil de encontrar os nomes, mas aos seus olhos, pareciam bagunçados já que os menores se misturavam aos maiores e médios, indistintamente.
Com movimento preciso, Alice retira um pequeno frasco, confere-lhe o nome, abre-o e com prazer visível engole uma cápsula. Sente o remédio descer e se acomodar no seu estômago. Recoloca o vidro no lugar, olha no relógio como que se certificando de um próximo horário e vai para a sala dos fundos que ela transformou numa biblioteca. Esta é composta de prateleiras que tomam conta de duas paredes. Alice se senta comodamente numa poltrona e continua a ler um capítulo já começado do livro “Como aliviar a dor do corpo e da mente”. Entrega-se completamente à leitura até terminá-lo. Examina o relógio e volta para o banheiro. Repete o gesto mecânico de pegar outro frasco, conferi-lo e tomar, desta vez, uma drágea.
Esta é literalmente a rotina de Alice, senhora dos seus cinqüenta anos de idade, viúva, mãe de dois filhos já casados e cansados de ver a mãe se afundar, voluntariamente, nos seus remédios.
Há pelo menos vinte anos, quando perdeu o marido e se entregou ao marasmo do luto, dele não conseguiu mais sair. Na desesperada esperança de voltar à lucidez que achava perdida, Alice começou uma busca interminável de consultórios médicos. Toda semana encontrava um motivo para visitá-los passando a ficar deles, dependente.
Conversar com o doutor relatando-lhe algum mal-estar e exigindo um remédio que a aliviasse, deixava Alice feliz pelo resto do dia. Com isto montou sua farmacinha particular, como ela denominava seu armário do banheiro.
Tornou-se uma viciada em doenças e remédios. Também comprava todos os livros sobre os males do corpo e da mente que encontrava. Lia-os e se sentia apta a conversar com os médicos sobre qualquer sintoma de doença.
Quando um médico, amigo da família, a encaminhou para um psiquiatra, foi a suprema felicidade para Alice. Com uma hora semanal disponível só para ela podia relatar, questionar, opinar sobre todos os tipos de doenças. Além dos costumeiros remédios para os males do corpo, que ela não conseguia parar de ingerir, passou a tomar outros dois medicamentos para lhe acalmar a mente.
Na verdade, Alice encontrava-se sem chão. Descompensada em sua viuvez, solitária, frustrada, amedrontada, enxergava na sua dor a forma de se preservar. Procurar um médico ou tomar um medicamento era amenizar a sua destrutividade.
Com a ajuda do psiquiatra, Alice se percebeu. Passou a se enxergar devastada de corpo e alma. Começou a se questionar porque gostava tanto de médico e de remédios. Se ela se submetia a tantos tratamentos, porque não se curava?
Este foi o princípio da sanidade. Passou a desprezar alguns medicamentos da farmacinha particular chegando mesmo a jogá-los fora. Diminuiu as visitas incontáveis a consultórios médicos. Mobilizou atordoada toda opção para sair do torpor que a consumia.
Com sacrifício potencializou seu transtorno mental dizendo para si mesma que sua mente era a culpada do seu sofrimento. Percebeu que dela estava escrava e era preciso reverter a situação.
Devagar foi abandonando os remédios, deixando de lado a literatura médica e se dedicando a uma dieta mental, a parte mais difícil.
Tem agora uma existência quase normal com recaídas periódicas que ela rebate com árdua persistência encontrando mecanismos que a remete a uma vida saudável. Aos poucos eleva sua autoestima. Abre-se para a vida e para si mesma. Descarta a cara do medo. Acima de tudo, reconquista a confiança em si própria, reabrindo sua mente para novas possibilidades que certamente virão.



   
Publicado no livro "Seleção de Contos Premiados" - Edição Especial - Junho de 2014