Flavio
Dias Semim
Presidente Prudente / SP
Orgulho da Zinga
Balançado pelo vento, aquele jovem e belo
espécie de sucupira-branca sonhava enquanto contemplava
o lento passar do tempo, apesar de não ter pressa nenhuma,
pois poderia viver séculos plantado naquele chão
mato-grossense. No conceito de tempo dos humanos contam-se as
horas, os minutos, os segundos, as semanas, os meses, os anos,
etc., raciocínio esse que assim se pode estimar uma existência
de duzentos ou mais anos de vida para uma árvore. Mas para
aquele esguio arbusto, também conhecido como faveiro (Platypodium
elegans) somente se contava os dias e as noites, nada mais. A
“conta”, no caso, não é a numérica,
mas sim a percepção do espaço de tempo pelo
fato de seu crescimento ser muito lento. Os dias para sentir o
sol e tirar proveito de seus benefícios e a noite para
sentir o frescor do orvalho e dormir. E as chuvas? Ah! As chuvas
deliciosas, as vezes mansa, copiosa, pacífica e outras
violenta, nervosa, mas sempre a esperada chuva, que de qualquer
forma propiciava no chão o verde da relva, que iria transformar
ao seu redor aquele pedaço do cerrado num encantado jardim,
realçando o contraste do verde com suas delicadas flores
que variam do branco com nuances de rosa claro até o vermelho
intenso ou rosa escuro e que agora despontavam e desabrochavam.
Já esteve florido uma vez, ocasião que exibiu suas
lindas pétalas rosadas com tanto orgulho não notando
que elas eram ainda fracas e caíam mais rapidamente do
que as daquele enorme e majestoso vizinho com sua copa larga mostrando
por muitos mais dias e noites do que ele uma quantidade tão
grande de flores e assim causando-lhe um fio de inveja. Esperava,
com bastante ansiedade, a sua nova florada, a correr em breve,
pois as chuvas já chegavam com mais frequência.
Na monotonia da vida em terras do planalto central brasileiro
convivendo pacificamente com outras espécies nativas, naquela
calorenta tarde de primavera, pois no cerrado as estações
apesar de teoricamente distintas, na realidade parecem ser um
eterno verão, nosso jovem faveiro não estava se
sentindo muito bem, não de saúde, pois seu físico
era forte e vigoroso para o tempo de vida que tinha, porém
um pressentimento, uma sensação de que alguma coisa
estava para acontecer. Árvore não tem sentimento,
diria você, portanto não pode ter sensações!
É uma verdade, mas verá que nosso herói é
diferente, pois além do mais tem visão das coisas.
A cena trágica foi rápida. Os homens chegaram e
olhando para o jovem faveiro, um deles apontou e o outro imediatamente
sacou de um facão e começou a golpear a base do
arbusto. Golpes violentos de uma arma afiada derrubaram-no em
segundos. Indefeso, mutilado, carregado nos ombros de um daqueles
brutamontes via seu torrão natal distanciar-se cada vez
mais e mais, até desfalecer.
Aquele mesmo facão que o decepara de suas raízes
agora limpava seu tronco, extirpava seus pequenos ramos e finalmente
cortou a sua ponta, que jamais iriam contemplar os céus.
Nesse ritmo de trabalho o seu algoz repetia sem parar:
-que bela zinga, que boa zinga!
A partir de quando, transformado em instrumento de trabalho se
tornou companheiro inseparável do monçoeiro, nas
suas viagens fluviais, pois impulsionado por ele, fazia mover
aquele batelão, que era a forma de transporte do homem.
Sua ponta de base dentro da água penetrava na areia do
fundo, batia em pedras, cutucava troncos, na sina de vencer as
distâncias e sem jamais vergar. Era forte, altivo e algumas
vezes se aprofundava nas areias de um trecho, chegando a penetrar
ali boa parte de seus quase três metros de comprimento,
impulsionado até por quatro mãos humanas, mas não
vergava. Não vergar nunca era seu supremo orgulho, sua
forma de vingança por não ter mais podido viver
naqueles campos e produzir suas magníficas flores coloridas.
Não vergar era o modo de exprimir sua expressão
de tristeza por ter se tornado um simples bastão com a
finalidade de mover uma grande canoa.
O elogio era constante e por inúmeras vezes durante a sua
existência ouvira o homem dizer aos companheiros, vangloriando-se
que aquela zinga era a melhor de todas as que já tiveram,
pois não vergara jamais, apesar de ser constantemente submetida
a duras provas.
Recordava quando era aquele jovem arbusto, nascido no cerrado
bem próximo daquele local denominado varadouro de Camapuã,
quando integrando pela primeira vez a expedição
monçoeira, já transformado em zinga, embarcou com
destino a Cuiabá. As corredeiras do rio Coxim, com seu
solo pedregoso fazia com que seu trabalho fosse árduo,
apesar de acompanhar a descida das águas. Entre tantas
quedas d’água daquele trecho, após transpor
a perigosa cachoeira dos “Quatro Pés”, ouvia
sempre o homem comentar, preocupado, a proximidade da chegada
ao lajeado do Belliago, local onde o rio Coxim deságua
no rio Taquari, junto ao povoado que deu o nome àquela
temida corredeira.
E não foi por menos que seu barco quase se quebrara na
rebentação das águas naquelas pedras. Após
a passagem pela cachoeira do Belliago, ouviu orgulhoso o zingador
dizer, por mais de uma vez, que se não fosse a resistência
de sua zinga, teria naufragado no local. Contava sempre, entusiasmado,
como a zinga se portou com galhardia quando penetrou entre duas
pedras submersas e segurou a embarcação, através
dos braços não menos fortes do homem e como foi
evitada a batida na grande pedra que surgia a frente, acima da
linha d’água, pois a pancada iria ser violenta e
o esforço e a valentia de ambos tornou a passagem bem sucedida.
Um dia de descanso no arraial era o suficiente e na manhã
seguinte os monçoeiros, grupo de homens embarcados em suas
enormes canoas, desciam o belo rio Taquari, que dali em diante
sem cachoeiras significativas, correndo sobre areia com a calma
de um grande rio, apesar da velocidade de suas águas tornavam,
na verdade, a viagem tranquila onde a sua função
mais se assemelhava ao trabalho de um pacato remo do que de uma
ousada zinga.
A calma da descida do Taquari era algumas vezes interrompida pelo
ataque dos índios Paiguás, que muito ágeis
sobre suas pequenas canoas perseguiam as monções
e lutavam para roubar ouro e víveres, oportunidade em que
a resistente zinga se transformava numa poderosa arma do homem
e com violentos golpes desferia pancadas que derrubava o valente
e robusto índio, oportunidade para ela sentir uma enorme
satisfação, pois podia mostrar a outra face de sua
resistência.
Chegava até a experimentar saudades daqueles dias nos quais
os festivais de bordoadas tiravam a rotina da viagem e algumas
vidas dos canoeiros, brancos e índios. Com o fim da luta
e o retorno da paz a viagem seguia preguiçosa até
quando na foz do Taquari surge majestoso o rio Paraguai. Adentrando
a ele, inicia-se a subida contra o vento que produz águas
revoltas e por isso é necessário navegar o mais
possível junto às margens, procurando locais pouco
profundos, onde a base da zinga alcance o leito do rio e possa
se firmar para ser impulsionada pelo homem, repetidas vezes, inúmeras
vezes, dias sem pausa, noites curtas e de pouco descanso, sempre
fazendo força, sem esmorecer e, principalmente, sem vergar.
A entrada nas águas do rio Cuiabá navegando contrário
a sua correnteza não é menos animadora. O calor
intenso e cada vez mais forte faz o rude homem suar a cântaros
sob o sol inclemente, e aí, contemplando o seu semblante
e percebendo o seu destino, a zinga chegou a confessar que sentia
até um fio de simpatia para com o homem, com o companheiro
de árduas viagens, esquecendo por alguns momentos que foi
ele o seu carrasco e o seu feitor. Manejada por ele, sob suas
ordens e sua vontade, obedecia sem discordar e fazia o trabalho
silenciosamente. Mas teria outra forma, poderia recusar? Não,
evidentemente. A única coisa pensada em alguns momentos,
seria vergar e quebrar, o que lhe causaria o prêmio da liberdade
mas isto jamais iria fazer propositadamente, pois não vergar
era seu forte e supremo orgulho, a razão de sua existência.
Percorridos três mil quilômetros ou quinhentas léguas
como era a medida naqueles tempos e após meses de viagem,
cada chegada a Cuiabá se revestia em prenúncio de
breve retorno, pois o carregamento seria deixado, passageiros
desembarcados e outros embarcados, nova e valiosa carga agora
acrescida do ouro extraído das minas cuiabanas tomaria
novamente o destino de São Paulo.
E assim se passaram os anos...
Mas cada vez que a monção transpunha a pé
o varadouro de Camapuã, nosso herói sentia a dor
de uma saudade, à vista da terra natal. Nem o prazer de
navegar no rio Pardo, a quem tinha estima particular, reanimava
sua esperança, pois somente a passagem por aqueles campos
dava-lhe forças para vencer a tristeza.
Porém, com o correr dos tempos sua resistência debilitava,
pois os desgastes naturais ao longo dos anos de trabalho impulsionando
enorme canoas demonstravam pelas cicatrizes deixadas por lascas
tiradas de seu corpo, indícios de fragilidade. Mas o seu
grande orgulho, o orgulho de jamais vergar não perdia forças,
até que enfraquecida no seu núcleo pela velhice
impiedosa que atinge a todos e a tudo que vivem na terra, na passagem
pelo canal das águas do Rio Coxim, junto a sua foz, por
sobre pedras que seu leito esconde, ali mesmo, local onde por
inúmeras vezes suportara galhardamente a força da
correnteza das águas, uma manhã, num estalo surdo
e numa fração de segundo, se partira, dividindo-se
em duas. O homem, apesar de passado o trecho mais crítico
e colocado a sua canoa a salvo do naufrágio, raivoso pela
quebra da zinga, esquecendo que ela o acompanhara durante um longo
período de sua vida, furioso cuspiu ao lado e gritando:
“porcaria! droga!” arremessou longe o pedaço
que lhe ficara nas mãos, o pedaço maior, que flutuando
sobre as águas daquele rio, lentamente foi se afastando
dos monçoeiros e passou a boiar livre, descansando sobre
o líquido mais precioso da vida, contemplando os céus.
Por longo tempo, o que restou do altivo faveiro viajou apreciando
novamente os dias e as noites se alternarem até que em
algum momento, levado pela correnteza das águas, enroscou
nas raízes fortes de um frondoso ingá e ali permaneceu
preso, sem saber quanto tempo se passou, na medida dos humanos.
Foi aquele o local onde protegido pelos ramos do ingazeiro, sobre
as águas do Taquari e sentindo os ventos inconfundíveis
do rio Paraguai, tornou-se aquele o lugar da sua sepultura, até
quando seus destroços, podres, fracionados e pequenos,
chegaram às águas do oceano e nunca mais se ouviu
falar dele.
(Conto premiado em 1º. lugar no 4º. Concurso Literário
da SEMEC/Divisão Cultural de Coxim/MS)
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