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Vera Lúcia Pavan Ferreira
Sertãozinho / SP

 

A menininha

 

O chá de erva-cidreira fumegava sem pressa em xícaras domingueiras, na bandeja descansada sobre a peça de jacarandá que guardava o enxoval de bebê, matizado em tons azuis.
O mosquiteiro azulava o berço. Tingia inocente o tradicional mandrião branco, estendido delicadamente entre toalhas macias e a bacia de banho.
Dona Aurora, a parteira, preveniu as mãos, lavando-as. Aproximou-se calma e confiante diante da missão de trazer ao mundo mais uma vida: um menino, desta vez... Tomou do material necessário e, persignando-se, confirmou que era chegada a hora.
Era uma manhã ensolarada de Natal, e vovó aguardava impacientemente por meu nascimento. Sonhara a vida toda com um neto, frustrando-se a cada parto de sua numerosa família, entre filhas e noras.
Misteriosa, a barriga de mamãe tratou de guardar o segredo do sexo do bebê. Mas, de boca em boca, de ouvido em ouvido, o sonho dela era alimentado pelos afagos das velhas amigas que diziam o que ela queria ouvir: “É um menino!” A benzedeira também havia confirmado com a simpatia da agulha: “É um menininho!”.
Inseparáveis, as amigas de vovó não a deixaram sozinha na hora do meu nascimento. — aboletadas no aposento, serviam-se do chá, divididas entre as rezas em intenção a Nossa Senhora do Bom Parto e à fé nas adivinhações da benzedeira. Todas ali respiravam o mesmo ar, exalado de galhos de arruda, folhas de guiné, água benta furtada da pia batismal da igreja e o cheiro do parto.
Silenciosos, os muitos pares de olhos fitavam um só ponto. Os ouvidos não distinguiram o sexo do choro. Vovó esperou mais um pouco, preferiu a confirmação no grito do quarto: “É Menininha!” Atestaram espantadas: “É uma Menininha!” Chorei assustada. Vovó caiu desfalecida aos pés apressados das amigas que foram embora, evitando interpelações.
O quarto vazio tornou-se, para mim, um mundo grande, onde meu único carinho foi o abraço do mandrião branco tingido pelo azul do mosquiteiro que velava o berço no qual, depois do primeiro leite, dormi embalada por cantigas de ninar que a vida tratou de me ensinar.
Vovó guardou a decepção e a perda das amigas; a benzedeira mudou-se de bairro e o segredo da segunda gravidez de mamãe deu de presente à vovó o meu irmão Diogo, dois anos mais novo que eu. Esquecida por todos, cresci, sob o domínio maldoso de vovó e o contentamento que vinha de todos os sobejos de meu irmão Diogo.
Ainda me lembro do calor dos raios do sol invadindo minha janela: “Acorda Menininha! Acorda!” O sol fez o que os outros faziam, chamou a mim Menininha, porque ele também sabia; ele estava lá, quando ganhei o apelido de Menininha, assim que vi pela primeira vez a sua luz. Mas naquela manhã de Natal, o sol veio chamejante acender as velas de meu nono aniversário.
Meu presente estaria ali, embaixo da cama, fiel ao capim e ao pedido que fiz à vovó: uma bicicleta Monareta – a criançada era louca por uma desta.
Olhei embaixo da cama e não vi o meu presente – a bicicleta não estava lá. Mas como bicicletas não cabem embaixo de camas... acreditei que todos estavam esperando por mim e corri ao encontro do murmurinho dos filhos, noras e netos de vovó, que vinha lá da sala grande, onde ela sempre armava a árvore de Natal, com as enormes bolas coloridas e aquele falso Papai Noel que parecia sorrir da felicidade de Diogo montado em sua Monareta vermelha, a mesma cor que eu havia escolhido.
Na sala não havia outra bicicleta, só a embalagem que guardara a de Diogo, e a enorme fita de cetim, enfeite do embrulho, cintilando nos olhos da vovó todo o amor que ela sentia por meu irmão.
Pensei que estavam brincando comigo, e voltei ao quarto. A inocência não me dava lágrimas, só um fio de esperança de que talvez desarmada a bicicleta coubesse, sim, embaixo da cama. Mas quem estava lá esperando por mim era um urso feio, num embrulho mal feito, amarrado com um laço azul-marinho, numa pequena caixa que o deixava torto e infeliz.
Não queria aquele urso feio que de repente apareceu embaixo de minha cama como presente de aniversário e de Natal – eu precisava judiar dele, quem sabe ele fosse embora... Puxado por um barbante, o urso passeou comigo pela casa, atropelando móveis e pés de parentes.
A pirraça fez-me ganhar muitas palmadas de minha avó, sob o olhar indiferente de mamãe e os risos de minhas primas e de meu irmão Diogo.
Subi as escadas que voltavam aos quartos e entrei no banheiro de vovó. O vaso sanitário recebeu o presente indesejado. A água girou o redemoinho do sumiço, cobriu o intruso, afogando-o, desafogando-o, fazendo dele um gato de sete vidas, emergindo encharcado, respirando ofegante, lutando com meus sentimentos, com as mazelas do desamor, da diferença, do abandono, do ódio.
A água desceu a escada, invadiu a casa, inundou a sala de jantar, assustou a mesa do almoço natalino. Então todos se lembraram de mim e foram cobrar a travessura, mas foi o grito de vovó que nunca me deixou esquecer, meu nono aniversário:
“Menininhaaaaaaaa!” A voz ameaçadora fez-me empurrar com as mãos o urso esgoto abaixo. Mas ele não se foi... Aflorou novamente. Olhei seus olhos com o frio da indiferença; nos dele, vi o brilho de um amor imenso iluminando minha infância, tecendo meus sonhos infantis. Sorrindo o resgatei. Acreditei no amor que vi nos olhos felizes de um urso de brinquedo.
“Menininhaaaaaaaaa, abra a porta!” Outra vez, vovó veio roubar-me o amor. Assustei-me, e o urso caiu de minhas mãos. O redemoinho do mal obedeceu aos gritos dela.
“Menininha, o que está aprontando aí?”
“Nada, nada, nada!”
“Nada? A casa está inundada! Você estragou nosso Natal, por isso, vai levar uma surra. O que está aprontando, menina má?”
“Nada, nada, nada!”
E o urso nadou. Abracei-o. O sol a pino o secou naquele dia de Natal.
Hoje, depois de tantos anos, minha avó é cuidada por mim. Debilitada, ela vive em sua cadeira de rodas, agarrada ao meu ursinho de brinquedo. Não há mais festas de Natal. Ninguém a visita tampouco telefonam. Vendo-a assim abandonada por todos, pude perceber que o ódio comete o pecado e o amor promove o perdão.



   
Publicado no livro "Seleção de Contos Premiados" - Edição Especial - Junho de 2014