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Luís Felipe Gonçalves do Nascimento
Bayeux / PB

 

A epistolar e enigmática contradição na existência

 

O Paraíba, despejando água como nunca se ouvira falar por toda aquela região, trazia o equilíbrio entre os brejeiros e donos de usina. Entre ricos e pobres. Para o velho rio a humanidade não se dividia em castas. Derrubava e punha fim em qualquer obstáculo que lhe impusessem. De longe, o caldo do cardo amargo confundia-se com lama. E tudo transbordava em um fluxo contínuo.
Carrido contemplava a cheia de longe sem nada poder fazer, morava às margens do gigante d’água e desejava apenas chegar em sua casa e deitar ao lado de sua consorte com quem casara há 1988 dias. Entretanto, todo este tempo não consumiu seu amor por Erva. Ainda sentia por ela um fervor corporal, semelhante ao que o tomou na noite em que se casaram.
Chegou em casa, após uma caminhada de quatro quilômetros; tomou seu banho crepuscular e correu a procura de sua amada.
Erva ficava em casa, vez ou outra recebia a visita de uma prima que possuía seus trinta anos, mais ou menos sua idade, e as duas riam e choravam das misérias vividas, conversavam distraidamente até o marido da anfitriã retornar.
No dia seguinte Carrido decidiu voltar mais cedo, pois a ponte que guiava seu destino havia desmoronado. E o rapaz não pôde continuar seu trajeto.
Ao longo de sua caminhada, a beira do caminho, surgiu um pequeno ser humano, alguém que os olhos mais perspicazes haveriam ignorado, pois não demonstrava sensualidade, nem inteligência, nem feiura nem alegria, nem tampouco vaidade. Seus traços se assemelhavam ao que nunca vimos, a uma demoníaca entidade vinda do além-mundo, indecifrável.
- Olá senhor Encardido! Diga-me o porquê do ser humano não ter inventado uma linguagem para demonstrar o que não se pode dizer? Diga-me o porquê de só habitarmos e vivermos agora devido a certa capacidade de escrever e demonstrar e ilustrar e inventar que em algum lugar insiste em acrescentar um fonema a mais na nossa história? Diga-me ainda compadre se é possível que o universo se realize sem mim, porque ao que consta eu sou o universo e que quando deixar esta matéria de existir quem me convencerá que o universo a transpassará?
Carrido, ainda atordoado pela sequência impiedosa de perguntas, estava preparando o raciocínio para responder à criança que se lhe mostrara tão subitamente quando foi surpreendido pela única afirmação vinda daquela entidade.
- Ah! Meu bom rapaz, o que nós vemos é o que eles querem que enxerguemos. E nunca poderemos calcular o vazio que corrói a humanidade, pois o último espaço é preenchido com a dolorosa bocada de um verme. Disto, senhor Camilo, eu nunca duvidei.
E a criaturinha adentrou no canavial. Sumindo em direção a um caminho que não se podia calcular. E Carrido continuou no seu caminho.
Mais a frente, no caminho de volta daquela tediosa estrada, perpassada pelo tempo, cuja única certeza é a que existe um fim, Carrido avistou de longe um porco se esgueirando, não na solidão, mas tentando fugir dos laços de uma firme corda que lhe puseram sob os pés e cabeça. Já próximo, viu seu dono em um lajedo, que reclamava:
- Moço, tá vendo este porco? Agoniado, exaltado, comungado e excomungado, fedorento, ranhoso, condenado e que guarda em si, como um pote, a essência de todos os porcos.
- Sim senhor, meu velho.
- Igual a este porco é a criação; que não cessa de receber nomes, conceitos, qualidades, cordas, cipós e amarras, mas que é muito mais universal que uma corrente.
Encabulado com a aparição de tais figuras em seu caminho o jovem agricultor resolveu continuar sua caminhada. Quando entrou na casa humilde, que lhe custara tanto suor, o jovem contemplou Erva deitada, não como a encontrava rotineiramente, mas transpassada por sangue, confundida entre uma lama vermelha que escorria por suas veias.
No móvel em que sua esposa guardava os raros objetos de vaidade estava uma carta, em que a sua esposa confessava:

Tirei minha vida, pois descobri que ela era inútil. Pois depois que saístes hoje um velho me abordou na porta de nossa casa, me perguntou o porquê de nossa existência ser tão passageira, e também de como o ser humano se mantém em pé, tendo o saber de que seu futuro é desfilar em uma passeata em que ele mesmo não terá consciência. Depois disto me disse que é inútil lutar pela existência uma vez que nem temos certeza da mesma. Quando ouvi o barulho de um animal estranho o perguntei o que era aquilo, e ele respondeu que o autor não lhe dera permissão para explicar.
Quando terminou o sermão me deu um líquido preto que hesitei em tomar, mas que, com a insistência de que aquilo me revelaria outra existência, me responderia às perguntas feitas antes, resolvi beber. Senti-me mal; Fiquei atordoada e resolvi por fim a esta confusão. Deixo-te apenas meu incondicional amor.
Assinado: Erva de Carrido.
P.s. O nome do velho era Augusto. Ele deixou cair uma receita médica, cujo propósito era obter um remédio contra a pneumonia.

O miserável viúvo saiu da casa e se enforcou em uma árvore que contemplava o pôr do sol, a inclinação angular daquele organismo fotossintético demonstrava aptidão para o trabalho que lhe fora engendrado. Carrido estava morto, pendurado em um magnífico pé de Tamarindo, e com ele se fora as utopias que solidificava seu sonho de vida comum; que lhe fazia acreditar valer a pena transferir seus propósitos a uma causa maior, socializar aquilo que era individual. Estava tudo acabado. Exatamente no dia 1989 de seu casamento.

 

   
Publicado no livro "Seleção de Contos Premiados" - Edição Especial - Junho de 2014